I – O contrato
social
Uma rápida investigação por entre a história do pensamento, e logo
nos daremos conta de que a idade moderna chega trazendo como um dos seus
principais panos de fundo o lema: “Liberté, égalité et fraternité” (Liberdade, igualdade e
fraternidade). O enredo que embala a revolução francesa, já nos estertores do
século XVIII, rapidamente ecoa por todo o Ocidente.
Com o horror visceral hobbesiano ao “homem à solta”, os tempos
modernos se inauguram com a configuração do republicanismo e do moderno Estado
democrático de direito. É justamente sobre a égide do liberalismo burguês e
suas aspirações universais de igualdade que se inicia o projeto filosófico,
moral e político da modernidade.
Um conceito importante que marca o pensamento político dos séculos
XVII e XVIII é o do contrato social: através do pacto, o individuo abdica de
sua liberdade, transferindo sua autonomia deliberativa para um poder
transcendente, em favor de um soberano, e essa submissão é a condição de sua
liberdade e de seus direitos enquanto cidadão. Eis então que o conceito de povo
aparece na modernidade como uma produção do Estado.
Na teoria política moderna, o povo é representado como o produto
do ato contratual constituído através da sociedade burguesa, como explicam
todos os filósofos liberais modernos de Hobbes a Rawls. O contrato faz da
população um corpo social único representável, passando por cima de todas as
necessidades singulares de representação. Portanto,
é o Estado que garante a medida de liberdade dos indivíduos, útil ao fundamento
da máquina estatal.
II – Utilitarismo altruísta (egoísta)
Na primeira metade do século XIX três pensadores, Max Stirner,
Pierre Proudhon e Karl Marx já anunciavam que a democracia seria a religião do
rebanho do século XX; quarenta anos mais tarde Nietzsche, na descrição que faz
da sociedade moderna, contesta o contratualismo e a democracia e nos apresenta
o “animal de rebanho”. De acordo com Nietzsche, onde toda manifestação
singular, diferenciada é vista como atentado e ameaça contra a coesão social,
só o que se pode esperar é o empobrecimento cada vez maior da cultura fadado a mergulhar
nessa mesmice massificada a que mais tarde se chamaria “indústria cultural”.
Ora, conceber que o Estado tenha origem num pacto social firmado
entre indivíduos livres dispostos a negociar suas prerrogativas naturais só
poderia ser fruto da imaginação de um povo de negociantes, a saber, os
ingleses, cuja habilidade principal consiste em distorcer a realidade para
vender seus produtos – no caso, as suas ideias.
Durante a segunda metade do século XVIII, os franceses, ainda em
processo de laicização, passeavam por Londres e se admiravam com suas enormes
instituições liberais.
A própria ideia de pensar a origem do Estado democrático em termos
de utilidade (um conceito tipicamente moderno) partirá basicamente de dois modelos: o
modelo jurídico e o modelo empirista inglês. Assim, de acordo com o “termômetro
moral” de Jeremy Bentham, cada um deve contar por um. Isto é, a moral
utilitarista condena seu agente a agira na contramão de seus apetites, no caso
deles não coincidirem com o interesse da maioria.
Contudo, seria preciso que tivéssemos em nós uma soberania
deliberativa frente aos apetites do corpo. Algo, portanto, que transcendesse a
materialidade corporal e suas inclinações. Pois tudo o que ergue o indivíduo
acima do “rebanho” e infunde temor ao próximo é doravante apelidado de mau; a
mentalidade modesta, equânime, submissa, igualitária, a mediocridade dos
desejos obtêm fama e honras morais.
III – Império: direitos universais do homem
O mundo não parece ser mais governado por sistemas políticos estatais;
mas sim, por uma única estrutura de poder que não apresenta nenhuma analogia
significativa com o Estado moderno de origem europeia. O “Well fire state” (Estado de bem-estar social) produzido na segunda revolução industrial da modernidade, período
de transição do pós-guerra, anuncia os direitos universais do homem. “O novo
comando imperial”, segundo os filósofos Negri e Hartd, “se exerce por meios de
instituições politicas e aparatos jurídicos cujo objetivo é essencialmente a
garantia da ordem global, isto é, de uma ‘paz estável e universal’ que permita
o funcionamento normal da economia de mercado”.
Se antes, o conceito de democracia estava restringido às
delimitações da soberania nacional, agora, as diversas instituições mundiais,
como: a ONU (Organização das Nações Unidas), o FMI (Fundo Monetário
Internacional), a OMC (Organização Mundial do Comércio) etc., passaram a se
encarregar de assegurar a paz mundial e os direitos universais do homem.
E aqui, portanto, devemos deslocar o conceito de povo ao de
multidão. A multidão, como explicam os filósofos Negri e Hardt, não poder ser
compreendida nos termos do contratualidade. Grosso modo, a multidão desafia a
representação porque é uma multiplicidade, indefinida. Já o povo é representado
como unidade, corpo único. Um
novo ponto significativo que deve, também, ser aprofundado é a relação entre
movimentos sociais e modificações institucionais. O
capital tomou de assalto à política representativa e, com isso, o desaparecimento
progressivo dos universos autônomos de produção cultural. Todavia, o objetivo principal, hoje,
não é descobrirmos o que somos, mas nos recusarmos a ser o que somos: um corpo
social único representado. É
dentro dos movimentos sociais que esses temas estão se tornando pertinentes; os
partidos estão cada vez mais perdendo força e espaço, pelo contrário, são os
movimentos que expõem os problemas e sugerem a solução.
Arte de Félix Dolah
Diante do cenário apresentado acima, a seguinte pergunta nos deve
ser pertinente: as instituições
universais, geradoras dos direitos humanos, articuladoras da paz e da
liberdade, estão investindo de fato no fortalecimento do homem, no
fortalecimento da vida intensa, ou seguem investindo nesse tipo de “subjetivação
assujeitada” que nos autoriza a ser tiranos em nome da democracia?
- por Higor Gusmão