As ocupações dos estudantes secundaristas sob a luz da Esquizoanálise


As ocupações de escolas públicas por estudantes secundaristas exprimem o devir revolucionário da juventude brasileira contemporânea. Uma juventude que ocupa a escola e nela resiste é uma juventude que acredita na escola como um lugar do possível. É uma juventude que contra-efetua o estado de coisas imposto, suscitando acontecimentos que fogem ao controle. É uma juventude que experimenta uma subjetividade política num processo de autogestão coletiva.

As ocupações não são apenas uma resistência à PEC 241, mas também, e sobretudo, uma experimentação de modos de vida inabituais, na qual os acontecimentos dobram e desdobram a rede de significação dos estudantes, produzindo novas maneiras de ver e sentir o mundo. As ocupações dos estudantes secundaristas tem qualquer coisa que flerta com aquilo que Deleuze chamou de "máquina de guerra". Afinal, para Deleuze, as máquinas de guerra "não seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos".[1]

As máquinas de guerra repousam sobre as linhas de fuga dos indivíduos e dos grupos, onde resistem ao aparelho de Estado. O Estado, por sua vez, goza de suas  próprias máquinas, as quais repousam sobre as linhas de segmentaridade dura, a saber; a máquina binária (que opera nos cortando e recortando) e a máquina abstrata (que opera nos sobrecodificando).[2] Todas essas máquinas, entre outras, estão em constante luta - em nós - pela condução das linhas que compõem os acontecimentos e os agenciamentos. Disso se segue que há um perigo referente a vitória de cada máquina em questão.

A esse respeito, Deleuze aponta que: se as linhas duras tornam-se absolutas, tornamo-nos enrijecidos, com modos de vidas demasiados duros e, por conseguinte, perdemos a capacidade de criar; diferentemente, se as linhas flexíveis rumarem para determinada direção muito rapidamente, de modo brusco, podemos cair em buracos negros, onde insurge os microfascismos de pequenos grupos; e, por último, se formos levados por linhas de fugas em demasia, corremos o risco da destruição de nós mesmos e dos outros.  Cabe então, não somente ao esquizoanalista, mas a todos que se preocupam com o acontecimento de si mesmo, acompanhar essas linhas, identifica-las e tomar cuidado com o perigo do excesso de cada uma.


Arte de Janusz Jurek


Agora, então, resta perguntar: quais são as linhas que compõem a resistência dos estudantes secundaristas? Decerto que as linhas moleculares, linhas flexíveis e de fuga. Logo, o perigo do movimento está na possibilidade de alguns jovens tornarem-se microfascistas e até mesmo demolirem a si mesmo e o grupo. Disso abre-se outra questão: já é possível notar alguma dessas fatalidades nas ocupações? Parece que sim. Basta acompanhar alguma ocupação ou escutar o relato dos jovens para tomar ciência de vários casos nos quais pequenos grupos quiseram tomar a frente da ocupação e provocaram uma rivalidade entre os alunos da escola, resultando inclusive na não-ocupação, na desistência da resistência.

Deleuze já alertava que "a política é uma experimentação ativa, porque não se sabe de antemão o que vai acontecer com uma linha".[3] Portanto, é preciso tomar cuidado com os perigos de cada linha, para que o movimento seja potente, criador e coletivo.




[1]  DELEUZE. Gilles. "Controle e Devir". In: Conversações
[2]  DELEUZE. Gilles.  "Políticas". In: Diálogos
[3] Idem


NOTA: Sei que o tema merece uma definição mais elaborada das linhas, das máquinas, enfim, mas a vida vem tirando o meu tempo de dedicação ao blog... entre-tanto, dediquei-me a esse esboço numa noite para compartilhar minhas considerações. Por favor, deixe seu comentário. Abraço.

      Desconfio daqueles que não se engasgam para falar, que não gaguejam, que não mordem a língua, que não se desesperam... Duvido dos que atiram palavras, sequências, sem titubear: mãos ao alto! Aí vem o palavrório – conjunto de palavras sem muita importância indo ao chão. Pois bem: suspeito de quem não sofre de engarrafamento de palavras no esôfago. Uma mínima retenção já é sinal verde de saúde. Afinal, desembocar palavras, colocar problemas, palpitar, deve ser uma tarefa tão cautelosa quanto a de libertação de prisioneiros. A questão que se faz é a seguinte: falar, assim como pensar, deve ser transgredir. Um abrir de celas: um pra-lá-vão – conjunto de palavras sem muitas amarras indo ao encontro. Assim, como Caetano em “Branquinha”: “Vou contra a via, canto contra a melodia, nado contra a maré.”. 

      Aos falantes afiados, aos tagarelas precisos, um primeiro conselho: mastigue 40 vezes antes de engolir a sopa de letrinhas, antes de incorporar qualquer discurso. Mastigar é ação radical que objetiva quebrar valores, conceitos e objetos levantando suspeitas sobre a sua naturalidade, estabilidade e concretude. É aplicar força para desmontar ícones e ídolos. Desmontar sem propor nada no lugar, “por entender que os acontecimentos e a história resultam do embate de forças e não de projetos filosóficos ou da ação ou intenção de ‘sujeitos geniais’ como: inventores, pensadores...”. 


Arte de Francis Bacon


      Tussa! Sempre que for necessário. As instituições (os instituídos) seguem nos movimentos que enquadram, encaixam, sufocam as diferenças. Tossir, nesse sentido, é sentir a garganta arder, literalmente se irritar quando uma dessas forças encarnadas em palavras pretende se reproduzir, ir pro mundo, ser verdade. Tossir é insistir em uma “estética da existência, pautada em uma ética da diversidade da vida”. 

      Eu aposto na análise, no “talvez”, na meia-verdade. É por isso a demora, é por isso a dificuldade. E é por isso também o não entendimento dos majestosamente articulados. Não fale de boca cheia. Vai devagar. Palavra por palavra não enche boca, mas emite signos. Por palavra por palavra é possível entrar, esmiuçar, analisar, resistir, criticar, sentir. Palavra por palavra. Pra lá vão elas, de encontro não ao chão, mas ao outro – produzindo afectos e afeções, catalisando sentidos, fazendo rede e trazendo esperança.

Foucault – o ambito laico dos aparelhos de Estado sob as tramas do poder pastoral

por Higor Gusmão

Foucault não é daqueles pensadores que participam do culto ao “Estado de direitos”. Em sua perspectiva, onde toda manifestação singular é vista como atentado e ameaça contra a coesão social, devendo ser mantida as margens, encarcerada, o que se pode esperar é o empobrecimento cada vez maior dos universos autônomos de produção cultural. Em suas obras como História da Loucura, O nascimento da Clínica, Vigiar e Punir o pensador posiciona-se em riste contra esse grande Leviatã a que chamamos República Democrática.

As instituições burguesas operam em nossas sociedades como verdadeiras máquinas de sequestro, pontua Foucault (em Vigiar e Punir ele falará da “máquina-prisão”, mas também da máquina-escola, da máquina-hospital...).  Sabemos, afinal, do que são capazes essas velhas senhoras de origem inglesa, elas nos tolhem o contato com a superfície. Separam-nos da experiência do tempo e do acontecimento. Contaminam todo o solo fértil da vida tornando-a estéril, insuficiente, miserável.

De outro modo, ao submeterem o corpo a uma função, a uma finalidade, as instituições do capital inserem certa vontade de verdade ou ideal em nosso discurso, “como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes”.[1]

Igualmente, verifica Foucault, operava a funesta tradição dos sacerdotes em nossas sociedades, devido a essa relação especifica de poder “está ligada à produção da verdade – a verdade do próprio indivíduo”.[2]  – Renuncie todos os teus pecados (desejos), você deve por a verdade de Deus em seu coração; assim o diz o sacerdote.

Tal observação é o que faz Foucault (eventualmente seguindo uma esteira nietzschiana) direcionar suas investidas teóricas sobre as práticas do poder pastoral em nossas sociedades, uma vez que, apesar do processo de laicização promovido sob a égide do liberalismo burguês, tal prática inventada pelos primeiros padres da igreja cristã ainda viria se configurando no âmbito laico dos aparelhos de Estado. O pensador nota que entre os principais processos de subjetivação do sujeito moderno encontram-se fortes vestígios da pastoral cristã, igualmente, como diria Nietzsche, por trás de cada sim a Deus encontra-se um não à vida.

Para Foucault, “o poder do tipo pastoral, que durante séculos – por mais de um milênio – foi associado a uma instituição religiosa definida, ampliou-se subitamente por todo o corpo social; encontrou apoio numa multiplicidade de instituições”.[3] Até mesmo instituições ancestrais como a família eram chamadas a cumprir funções pastorais. As cartas régias [em francês, lettres de cachet] como observa o autor, em Vigiar e Punir, eram solicitadas muito mais por um membro da família ou amigo próximo do que propriamente pelos funcionários da guarda real.


Arte de Brandon Kidwell

A evidência evocada pelo pensador nos mostra, sobretudo, como as sociedades modernas – organizadas em bases eclesiásticas – se aproveitaram ao máximo da habilidade sacerdotal para promover individualização e organização das multidões em rebanhos de corpos docilizados. Como o diz Nietzsche, “onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que o organizou”.[4]

Todavia, o que Foucault percebeu de modo magistral é o fato dessa prática que os padres cristãos inventaram, e que, posteriormente, seria a mesma técnica utilizada na implementação do Estado moderno, implicar, acima de tudo, no sacrifico de si, no sacrifício do corpo e do desejo. Uma prática contrária, diga-se de passagem, aos cuidados com a vida, a estilização de si que Foucault irá encontrar na cultura grega. A vida aliada a uma ética, e não a uma moral.

 Diante desse cenário o pensador francês nos propõe: “temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos”.[5] Afinal, um corpo estriado através do mecanismo panóptico dificilmente cooperaria na formação de verdadeiras máquinas de guerra (fazendo uso de um termo deleuziano) sem correr o risco de reproduzir os aparelhos de captura do Estado.

Hoje, mais do que nunca, tornou-se imprescindível a estilização da vida. A gerência dos próprios desejos e afetos. A recusa em assumir (consumir) compulsoriamente identidades enlatadas que diariamente nos são empurradas goela a baixo. Fazer do corpo e da existência algo mais interessante, e não apenas meios para se atingir uma verdade ou ideal. O "cuidado de si", queridos leitores, talvez seja a grande lição de casa que Foucault tenha nos legado, a ética como único caminho para nos livrarmos das tiranias do saber/poder, das prisões do sujeito e do império da estrutura.



[1] A ordem do discurso, pág. 9.
[2] O sujeito e o poder, pág. 237.
[3] O sujeito e o poder, pág. 238.
[4] Genealogia da moral, III, §18, pág. 116.
[5] O sujeito e o poder, pág. 239.


Referencias Bibliográficas:

FOUCAULT, MA ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. – São Paulo: Edições Loyola, 2014.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral, uma polêmica. – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.

Genealogia da consciência em Nietzsche: o homem como um animal gregário?

por Higor Gusmão

“A consciência é a última e derradeira fase da evolução do sistema orgânico e, por conseguinte, também o que há de menos acabado e de menos forte neste sistema. Do consciente provém uma multidão de enganos” – Nietzsche, A Gaia Ciência, Livro primeiro, §11, pág. 44.

Enquanto a modernidade discutia com veemência o “cogito ergo sum” [penso logo existo] cartesiano, Nietzsche se dispôs a trilhar uma direção oposta aos caminhos percorridos até então por todos os sistemas filosóficos de pensamento em sua época ao propor uma discussão sobre as forças ocultas que viriam constituir o homem. Em suas obras, o pensador alemão denuncia a fadiga e o engodo causados pela consciência e, de modo magistral, nos apresenta o campo da existência a partir de uma coesão de forças, ao contrário da estruturação de formas, estas tão aspiradas pelo pensamento moderno emaranhado aos moldes do pensamento socrático-platônico.

Destarte, como nos mostra Deleuze, “o conceito de força é portanto, em Nietzsche, o de uma força que se relaciona com uma outra força [1]”, necessariamente. A consciência, enquanto resultado desse jogo de forças em relação, só apreende o efeito de nós mesmos e jamais poderia se constituir como objeto de investigação para o conhecimento do mundo e do próprio homem. O fato de o homem ter feito do “eu”, do “ser”, do “nada” – no limite, conceitos que constituem as “malhas” da gramática – objeto de investigação, nisto acabou lançando a vida numa espécie de delírio, carência, miséria afetiva.

“A consciência se desenvolveu sob a pressão da necessidade de comunicação, que a principio era necessário e útil somente nas relações de homem para homem (entre o que manda e o que obedece) e que só se desenvolveu na medida desta utilidade. A consciência é apenas uma rede de comunicação entre os homens...” – Nietzsche, A Gaia Ciência, Livro quinto, §354, pág. 195.

O adestramento do indivíduo, necessário para o convívio social, surge da necessidade de uma linguagem que permite a comunicação com os demais. Deleuze observa de modo impecável que “a linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer [2]”. O homem, o mais medroso e desprotegido dos animais, necessitava de seu semelhante e daí surge a consciência de si.




Para Nietzsche, a vida em sociedade, embora tolha os instintos mais primários, tem uma ambiguidade fundamental, já perceptível na Genealogia da moral. A saber, o homem só se torna alguém digno de interesse por meio desse processo de martírio, castração – “jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória [3]”, resultado, por uma vez, de uma “consciência moral”, cuja gênese está na “troca” necessária entre os indivíduos.

Neste ponto podemos, de forma interessante, ir de encontro aos estudos sociológicos. Trocar objetos seria um fato social, nos diz o antropólogo francês Marcel Mauss; trocar é “mesclar almas”, em razão dos objetos usados para troca virem carregados de uma simbologia afetiva e misteriosa, devido o carácter sobrenatural (metafísico) que impregna as relações sociais.

“Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não pertence essencialmente à existência individual do homem, mas, ao contrário, à parte da sua natureza que é comum à totalidade do rebanho.” – Nietzsche, A Gaia Ciência, Livro quinto, §354, pág. 195-196.

Por meio de suas investidas teóricas, Nietzsche nos mostra que não é da natureza do homem – utilizando o termo “natureza humana” com toda cautela que se faz necessária – ser um animal gregário. Ao modo de Spinoza, outro grande pensador que, antes mesmo de Nietzsche, revelou o coliseu de afetos por trás do aparente véu da consciência, a Natureza só é divina por conceder a cada uma de suas partes a mesma capacidade que tem o Todo para produzir realidade.

Isto é, todos nós possuímos a plena capacidade de criar mundos próprios. Mundo que não necessitam partir de uma linguagem semiótica para terem existência. Existimos também ao utilizar a velocidade e a vibração de nossos corpos, não precisamos de nenhum rebanho.

Deixar para trás duras paisagens de osso, talvez seja a grande lição que Nietzsche tenha nos deixado ao destruir a golpes de martelo os pilares que sustentavam o pesado panteão da moral, da consciência embusteira. Aquele que se põe em estado de poder captar os inefáveis balbucios do subconsciente, ao ponto de poder dispensar a colaboração da razão discriminadora, abre caminhos à exploração para aquilo que não possui formas, mas fluxo; aprende a ver na força, na potencia uma aliada.



[1] Nietzsche e a filosofia, pág. 6.
[2] Mil Platôs vol. 2. Pág. 13.
[3] Genealogia da moral, II, 3 , pág. 46.

Referencias
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. – Rio de Janeiro, RJ: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.2. – São Paulo: Ed. 34, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.

Aprendendo a morrer com os estoicos: o exercício de morte como cultivo de si

Higor Gusmão

Aos homens ocupados. Desejam desesperadamente afastar-se da morte (como se o fosse possível). Querem-na como a linha tênue do horizonte. Sempre distante. Ah! Mas que tola pretensão humana, demasiada humana. Se ao menos a maioria deles soubesse que é preciso estar preparado antes para a morte do que para a vida, não se portariam feito criança pirracenta implorando para ficar um pouco mais chegado o momento do infindável lamento fúnebre. Sabias palavras a do estoico Sêneca:

“Ninguém é tão ignorante que não saiba que um dia deverá morrer; no entanto, quando a hora se torna próxima, ele hesita, treme, implora. Não te pareceria o mais estúpido dos homens aquele que chorasse por não ter vivido milhares de anos antes? Igualmente estúpido é quem chora por não viver daqui a milhares de anos. São situações idênticas: não serás como não foste, nenhum dos dois tempos te pertence. [1]

A vida é a tradução mais perfeita da finitude do tempo em nossa trajetória. A morte é inerente à vida. Paradoxo. Pois viver, antes de tudo, é viver uma trajetória temporalmente definida. E uma vez que a vida humana teria como principal atributo a finitude, a temporalidade seria a condição primeira de reflexão sobre a melhor maneira de viver. Reflexão sobre a vida que vale a pena ser vivida.

Ora, se a morte é, moralmente, um assunto quase intocável para nós, os estoicos aproximaram-se dela através do melete thanatou “exercício da morte”, prática habitual entre o filósofo romano Sêneca e o imperador Marco Aurélio. Uma prática que não os levará para a morte, queridos amigos, mas certamente lhes ensinará a morrer. “Um único dia é o tamanho da vida” [2]; eis, de maneira resumida, o objetivo de tal prática. A manhã como representação da nossa infância e adolescência, à tarde como o período da maturidade à velhice, e a noite, fim do dia, como o momento em que se deve olhar para trás e com alegria se entregar ao sono (a morte como representação) pelo dia bem vivido. Ou seja, todo instante deveria ter o sentido de eternidade, jamais nos arrepender de um gesto, ato ou palavra da nossa vida, mas toma-los como aprendizagem.

Os exercícios da cultura de sim entre os estoicos, tal como nos mostrou Michel Foucault em suas reflexões ético-políticas a respeito da moral greco-romana, compreendiam tanto um domínio do corpo como da alma... Entendida aqui como aquilo que nos move e faz pensar. O imperador Marco Aurélio já advertia com prudência: “Não permita tua alma maldizer do destino no presente nem temê-lo para o futuro.” [3] Posto que, agitada por vagos pensamentos, a alma nos tornaria escravos dos males pósteros, em especial o medo da morte, não favorecendo desse modo um voltar-se a si.

Para Foucault, práticas como o pensamento sobre a morte proporcionam melhor aproveitamento da vida. Todavia nossa civilização é vítima de uma interpretação socrático-platônica do mundo. Essa morte conhecida tradicionalmente, na qual a alma imortal finalmente se libertaria após um perecimento total do corpo, não passa de uma ilusão, para falar ao modo de Espinoza, de uma ficção, para falar ao modo de Nietzsche. A verdadeira morte é aquela que nós vivenciamos a cada instante de nossas vidas. A cada acontecimento de nós mesmos, como jatos de singularidade, onde afetos substituem afetos ininterruptamente. Morremos incessantemente a cada uso que fazemos da linguagem, esse meio privilegiado de efetuação humana. Uma prática que simplesmente joga fora relações, afecções, percepções.

Arte de Alexandra Levasseur

 Ah! Como são sábios esses estoicos, vamos, perscrutem as “Meditações” de Marco Aurélio, de lá sairão sentenças tão nobres quanto esta:

“Que é a morte? Se a considerarmos em si só, se, por uma abstração mental a separarmos dos fantasmas que lhe associamos, veremos que não passa de uma operação da natureza. É infantilidade temer uma operação da natureza.” [4]

Afinal, para o estoicismo a natureza é a referencia positiva a partir da qual o homem deve agir e se inspirar. O homem dificilmente irá superar a natureza.  Essa era a mentalidade entre gregos e romanos. Entretanto, quando chega à modernidade esse pensamento se inverte. Os homens acreditam que só poderão viver bem a partir do momento em que eles domesticarem a natureza, suas convulsões, suas catástrofes, seus prodígios, e isso inclui sua própria natureza, sua pulsões, seus desejos. Uma postura totalmente estranha, diga-se de passagem, aos valores mais altos e nobres da antiguidade.

Mas voltemos ao “exercício da morte”. A palavra “exercício” utilizada para designar o cultivo de si dentro do pensamento estoico tem amplo sentido, não a coloquemos no estreito limite de uma atividade puramente prática, como bem conhecemos no mundo pragmático de hoje. A lição ensinada por Zenão de Cítio, Crisipo, Epiteto vai além de uma simples praxe, mais do que isso, pressupõe uma reconciliação com Crônos, com o tempo do mundo, o presente.

Por fim, sinta-se interrogado por Sêneca, querido leitor, e tenha um bom “exercício de morte”:

“Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte.” [5]




[1] Aprendendo a viver LXXVII, Do suicídio, p. 73-74.
[2] Aprendendo a viver, XII, Da velhice p. 21.
[3] Meditações, Livro segundo, II, p. 21.
[4] Meditações, Livro segundo, XII, 24.
[5] Aprendendo a viver, I, “Da economia do tempo”, p. 15.

 Referências bibliográficas:

Marco Aurélio. Meditações; tradução Alex Marins. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2012.
Lúcio Anneo Sêneca. Aprendendo a viver; tradução de Lúcia Sá Rabello. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.



Considerações sobre o trágico em Nietzsche: “um presente de grego”

por Higor Gusmão

Basta Apolo reluzente puxar a carruagem do Sol, cedendo lugar a escuridão intrínseca a Dionísio Zagreu[1], para que se possa ouvir a música e o eco de inumeráveis gritos de prazer, dor e alegria vindos das florestas brumosas em pleno coração do mundo antigo. O povo dos mistérios trágicos, que por sinal é o mesmo que trava e vence a batalha contra os persas, criou para si, no enfrentamento das agruras existências, a arte da tragédia, que, ao exibir a supremacia do destino, ao mesmo tempo mostra a grandeza do herói ao tentar superá-lo. Ora! Quem dentre vós já tenha lido a Odisseia, conto épico do poeta Homero, e nunca sentiu-se um fiel tripulante de Ulisses nos vários desafios que o herói da guerra de Tróia enfrenta ao tentar retornar para casa; quem nunca se consumiu ao ler o “Prometeu Acorrentado” de Ésquilo, ou sofreu junto ao herói Édipo de Sófocles e sua luta constante para não cumprir o destino que lhe cabia. Pois o sentido trágico da existência parece ser a chave para explicar a “imortalidade” entre os helenos. “Nós acreditamos na vida eterna!”, assim exclama a tragédia[2].

Reclamando para si a posição de primeiro filósofo a compreender o fenômeno trágico entre os gregos, no “Nascimento da tragédia” - obra considerada por ele sua primeira transvaloração de todos os valores[3] - Nietzsche volta-se com imaginação e erudição para uma Grécia habitada por deuses dotados de vícios e virtudes humanas, apesar de livres da morte e da corrupção. É na arte da tragédia que o pensador vê se configurar o equilíbrio entre as forças dominantes no ser humano: duas divindades gregas que se opõem e se completam no contínuo desenvolvimento da arte, Dionísio lacerado em oposição à unificação formal de Apolo.

Todavia, qual é precisamente o sentido do “trágico” em Nietzsche? Uma vez que este conceito atravessa toda a sua obra, como um meteoro atravessa o universo, mas que muda de direção de acordo com que o pensador se desvincula de seus antigos influentes, a saber, o filósofo Shopenhauer e o músico Wagner, e se torna aquele filósofo nômade que faz filosofia a golpes de martelo.

Arte de Kieran Brent

Nietzsche contrapõe a perspectiva trágica da vida a duas outras visões: a dialética e a cristã. O “dizer sim!” dionisíaco opõe-se ao “não” da dialética; o jogo de dados heraclitiano ao chicote do silogismo socrático; a leveza da dança à gravidade da dialética. Uma vez que, “a dialética propõe uma certa concepção do trágico; liga o trágico ao negativo, à oposição, à contradição. A contradição do sofrimento e da vida.[4]

Entretanto, com maior reflexão, descobriremos um Nietzsche dialético no “Nascimento da tragédia”. Sim! Apolo é, igualmente, como escreve Nietzsche, o gênio do “principium individuationis[5] (principio da individuação); enquanto que, do outro lado, Dionísio desmembrado, sem órgãos, representa a reconciliação com a natureza. Nesse sentido, se considerarmos o “Eu”, o “Ser”, no limite, como princípio de todos os males e tormentas humana, Dionísio, num primeiro momento, atua como antítese a Apolo, nos libertando das grades da individuação apolínea, por conseguinte, da dor que ela nos causa.

Percebemos aqui que “o Dionísio da Origem da Tragédia ainda ‘resolvia’ a dor; a alegria que ele experimentava ainda era uma alegria de resolvê-la e também de levá-la à unidade primitiva.[6]” Nesta ocasião, Nietzsche esboça muito mais as dores da existência do que propriamente diz sim à vida, como é característico de uma visão trágico do mundo.

Deleuze observa com perspicácia e faro filosófico os vestígios do pessimismo schopenhaueriano que marcam Nietzsche nos primeiros anos de sua produção literária e destaca: “1°) [...] A Origem da Tragédia se desenvolve à sombra destas categorias dialéticas cristãs: justificação, redenção, reconciliação. 2°) A contradição se reflete na oposição de Dionísio e de Apolo.[7]

No “Nascimento da tragédia”, Nietzsche se apresenta contestador do carácter otimista e jubiloso do saber trágico, pelo contrário, ele identifica o otimismo como sendo um atributo especifico da dialética e põe a tragédia como sendo pessimista em sua natureza: 1°) “... Pois quem pode desconhecer o elemento otimista existente na essência da dialética...[8]”. 2°) “... Quero falar apenas da oposição mais ilustre à consideração trágica do mundo, e com isso me refiro à ciência, otimista em sua essência mais profunda...[9]”.

Mas como pode aquele que traz a boa nova sucumbir diante à teia da aranha universal[10]; Nietzsche é aquele filósofo que “diz sim” à vida, aquele pensador que afirma a mais áspera das dores, mais do que isso, aquele que faz da dor um combustível para a vida, ao seu modo: o que não me mata só me deixa mais forte.

E assim, agitado até o cerne pelas mais fortes convulsões do demônio dionisíaco, Nietzsche sofre sua mutação dando lugar ao pensador do eterno retorno e do amor-fati, aquele para quem a vida não se opõe a dor. O trágico então ganha um novo sentido em sua filosofia, desta vez, afirmativo e alegre. Essa transfiguração constata-se no decorrer de suas obras; em “De como a gente se torna o que a gente é”, Nietzsche sentencia: “‘Helenismo e pessimismo’: este seria um título nem um pouco ambíguo: ou seja, a primeira lição a mostrar como os gregos deram conta do pessimismo – com o que eles o superaram... Justo a tragédia é a prova que os gregos não foram pessimistas: Shopenhauer se engana neste, como em todos os outros pontos...[11]”. Filosofando com o martelo profere: “O artista trágico não é pessimista – ele justamente diz sim a tudo aquilo que é questionável e mesmo terrível; ele é dionisíaco...[12]”.

De modo magistral Nietzsche percebe todo o nosso mundo moderno encerrado às malhas da cultura alexandrina, cujo pai antecessor é Sócrates. Obstante a tragédia, Sócrates e o predomínio da razão sobre a vontade ou o instintual, cuja voz interior, seu daimon, coibia ao pensador ateniense a ação em vez de motivá-lo, representam já, para Nietzsche, o abandono da espontaneidade natural e o domínio da razão abstrata. Aqui se sentencia a morte da tragédia. Com Sócrates a vida perde seu caráter afirmativo e passa a ser o objeto que deve ser julgado pela ideia. “Ele não é nem apolíneo nem dionisíaco; ele nega todos os valores estéticos – os únicos valores que o ‘Nascimento da tragédia’ reconhece: ele é, no mais profundo dos sentidos, niilista, ao passo em que no símbolo dionisíaco é alcançada a fronteira mais extrema da afirmação.[13]

Partindo dessa acepção, hoje, torna-se mais do que necessário fazer do corpo, do “eu”, dos órgãos, do pensamento, meios de efetuação da própria potência, combustível dessa eterna luta singular e afirmativa de nós mesmos, em suma – “dizer sim!”, eis o que Nietzsche ansiava ao engendrar o sentido trágico da vida, e o axioma para a transvaloração de todos os valores.

Sim, meus amigos, crede comigo na vida dionisíaca e no renascimento da tragédia. O tempo do homem socrático já passou: coroai-vos de hera, tomai o tirso[14] na mão e não vos admireis se tigres e panteras se deitarem, acariciante, a vossos pés. Agora ousai ser homens trágicos: pois sereis redimidos. Acompanhareis, da Índia a Grécia, a procissão festiva de Dionísio! Armai-vos para uma dura peleja, mas crede nas maravilhas de vosso deus![15].


Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia; 1° edição brasileira: tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. – Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo; tradução, apresentação e notas de Renato Zwick. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é; tradução, organização e notas de Marcelo Backes. – Porto Alegre: L&PM, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia; tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.





[1] “Filho de Zeus e Perséfone, esquartejado e devorado pelos Titãs, mas cujo coração, salvo por Atenas e levado a Zeus, que o engoliu, deu origem ao novo Dionísio Zagreu, filho de Semele.” (nota extraída de O nascimento da tragédia; tradução de J. Guinsburg. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007).
[2] O nascimento da tragédia, § 16, p. 99.
[3] Crepúsculo dos ídolos, “O que devo aos antigos”, § 5, p. 136.
[4] Nietzsche e a filosofia, I, “O problema da tragédia”, p. 8.
[5] O nascimento da tragédia, § 21, p. 121.
[6] Nietzsche e a filosofia, I, “Dionísio e Cristo”, p. 10.
[7] Nietzsche e a filosofia, I, “O problema da tragédia”, p. 8.
[8] O nascimento da tragédia, § 14, p. 86-87.
[9] O nascimento da tragédia, § 16, p. 94.
[10] Genealogia da moral, III, § 9, p. 95.
[11] Ecce homo, “O nascimento da tragédia”, § 1, p. 82.
[12] Crepúsculo dos ídolos, “A ‘razão’ na filosofia”, § 6, 3.
[13] Ecce homo, “O nascimento da tragédia”, § 1, p. 83.
[14] Bastão enfeitado com hera e pâmpanos, e rematado em forma de pinha, usado nas festas em tributo a Dionísio.
[15] O nascimento da tragédia, § 20, p. 120-121.