por Junior Bonfá
Para problematizar a questão da produção de subjetividades, sobretudo no contexto contemporâneo, é necessário trazer os mecanismos do capitalismo para o foco da análise. O capitalismo é uma relação tecnologia-corpo, cuja principal conexão é o poder e o desejo. O que vem mudando ao longo do tempo são as tecnologias de assujeitamento, no entanto a intenção de afirmar uma condição corpo ao ser humano permanece a mesma: tornar o corpo dócil e produtivo.
O material imprescindível para o pleno funcionamento
do capitalismo não é o capital, como quer Marx[1],
mas precisamente as subjetividades que desejam este sistema. Conforme Deleuze e
Guattari sugerem, uma máquina capitalista que produz subjetividade se faz
primeira à máquina monetária que produz moeda[2]. Hoje,
com o mundo globalizado, este
processo de subjetivação nos salta aos olhos sob holofotes. As sociedades vêm
se constituindo como grandes fábricas de sujeitos, grandes fábricas dotadas de maquinário
eficaz no serviço de produzir sujeitos de acordo com suas precisões.
A
máquina capitalista invade e codifica incessantemente os fluxos dos nossos
desejos, nos conduzindo a assumir determinadas formas de ser e pensar. Faz
rebaixar as singularidades, as diferenças, em um movimento que nos normatiza em
um modo específico de subjetividade fácil de controlar[3], e
nos mantém, através da produção desta ordem - e da anti-produção de outras -, distantes
da participação política.
A
partir da obra de Foucault, Deleuze percebe que a operação fundamental da
sociedade disciplinar é o aprisionamento, a repartição do espaço em meios
fechados (escola, hospital, prisão, indústria..), e o estabelecimento de um
tempo de estadia ou trabalho nestes espaços. Modelagens fixas, portanto, que
poderiam ser aplicadas em diversos contextos. Deleuze mostrou que esse processo
vem sendo transformado, adequado para melhor eficácia, e nos apresentou a
sociedade de controle, onde o alvo principal não é mais um corpo que é posto em
confinamento num espaço, mas a subjetividade, o desejo[4].
Trata-se agora de um processo que interpenetra os espaços, que instaura um tempo
contínuo, que deixa os sujeitos enredados numa espécie de formação constante,
prisioneiros em campo aberto. O exercício do controle está, deste modo, em toda
parte, uma vez que “a linguagem digital do controle é feita de cifras, que
marcam o acesso ou a recusa a uma informação”[5].
Autor desconhecido. Você sabe de quem é? Nos informe.
As
crianças inseridas na escola, por exemplo, não estão somente submetidos a ficar
certo tempo em um espaço sob a formatação dos “especialistas”. Mais do que
isso, elas estão recebendo códigos, cifras que vão conduzir a melodia de suas
vidas. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari nos mostram que “a linguagem é caso de
política antes de ser caso de linguística”[6].
“Por
conteúdo não se deve apenas entender a mão e as ferramentas, mas uma máquina
social técnica que a elas preexiste e constitui estados de força ou formações
de potência. Por expressão não se deve apenas entender a face e a linguagem,
nem as línguas, mas uma máquina coletiva semiótica que a elas preexiste e
constitui regimes de signos[7].”
O
processo de subjetivação ocorre continuamente na relação do sujeito com o
mundo, no acontecimento, na transformação de afetos em signos. Os agenciamentos
que se fundam nessa relação - que se originam nos encontros que surgem na vida -,
se enredam nos regimes de signos para
produzir os desejos. “A subjetividade é produzida por agenciamentos de
enunciação, por semiotização”[8].
Em
se tratando do âmbito das instituições educacionais, Deleuze e
Guattari apontam que “damos às crianças linguagem, canetas e cadernos, assim
como damos pás e picaretas aos operários.”[9] Vale dizer que “a cultura se produz por tramas linguísticas, redes de significados e
relações de poder (...) Não podemos jamais esquecer que a suposta cultura
nacional comum confunde-se com a cultura dominante ”[10].
A esse respeito Deleuze e Guattari nos mostram que:
“Não
existe significância independente das significações dominantes nem subjetivação
independente de uma ordem estabelecida de sujeição. Ambas dependem da natureza
e da transmissão das palavras de ordem em um campo social dado. (...) A
verdadeira intuição não é o juízo de gramaticalidade, mas a avaliação das
variáveis interiores de enunciação em relação ao conjunto das circunstancias.
(...) Quando essas variáveis se relacionam de determinado modo em um dado
momento, os agenciamentos se reúnem em um regime de signos ou máquina semiótica[11].”
Lazzarato
ressalta a importância de reativar o conceito de anti-produção, que vem dos
anos 70 e 80, para compreender o contexto contemporâneo em que vivemos[12].
Deleuze e Guattari promoveram com a noção de anti-produção uma ruptura em
relação ao Marxismo clássico que fala apenas em produção, para mostrar que processo de produção também é necessariamente um processo de anti-produção[13].
No mesmo movimento que se produz algo se anti-produz algo. No que diz respeito as
subjetividades isso fica ainda mais evidente, uma vez que, por conseguinte,
quando um sujeito ruma para uma forma subjetiva, para uma forma identitária,
ele se distancia, por conseguinte, de outra que passa ser a oposição. “Tecnologias
de poder que interferem no modo de viver, no “como” da vida, e intervêm para
fazer viver, ao mesmo tempo em que deixam morrer maneiras de existir ou
admite-se até mesmo a morte de parcelas inteiras de grupos sociais”[14].
O
que acontece quando ensinam às crianças, aos adolescentes, etc, que a chance
que eles tem de “vencer ” na vida é estudando para entrar no mercado de
trabalho, em uma grande empresa, é precisamente a criação de certas linhas, de
certo código que produz o desejo, que produz certa subjetividade, e, ao mesmo
tempo, anti-produz outras. Anti-produção no sentido de não-criação, de
não-acontecimento, como por exemplo a ressalva que trago à consequência recorrente
da não-participação social.
Que
este texto, prezado leitor, além de servir como auxilio na compreensão dos
autores, sirva sobretudo para atiçar uma atenção ao modo como torna-se o que é,
sirva para atentar às significações dominantes que constroem maneiras mortiças
de existir, sirva para atentar ao agenciamento do desejo para que este flua por
linhas de fugas que fogem a mesmice moral que aprisiona o homem em uma forma
impotente de existir.
NOTAS REFERÊNCIAS
[1] MARX,
Karl. O Capital: Crítica da Economia
Política, livro I: O processo de produção do capital. Boitempo Editorial,
2013.
[2] DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol.
2. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
[3] FOUCAULT,
Michel. A Vontade de Saber. Rio de
Janeiro: Graal, 1977
[4] DELEUZE,
Gilles. "Post-scriptum sobre as sociedades de controle".
In:__________. Conversações. Editora
34, 1992.
[5] DELEUZE,
Gilles. Conversações. Editora 34,
1992, p. 226.
[6] DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol.
2. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 97.
[7]
Ibidem, p. 101.
[8] GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo.
Petropolis: VOZES, 12ª edição, 2013, p.
33.
[9] DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol.
2. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995,
p. 12-13.
[10] RODRIGUES,
Alexsandro. "Currículo(s), gêneros e sexualidades: nossas escolas comportam a
multiplicidade". In: Jurema Oliveira (org.). (Org.). Africanidades e Brasilidades: culturas e territorialidades.
01ed.Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015, v. 01, p. 159-173.
[11] DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol.
2. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 14-24.
[12] LAZZARATO,
Maurizio. Signos, máquinas,
subjetividades. Signs, machines, subjectivities. Edição bilíngue. São
Paulo: n-1 edições+ Edições sesc, 2014.
[13] DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo:
Esquizofrenia e Capitalismo. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34,
2010.
[14] HECKERT,
Ana Lucia Coelho; DA ROCHA, Marisa Lopes. A
maquinaria escolar e os processos de regulamentação da vida. Psicologia
& Sociedade, v. 24, p. 85-93, 2012.