por Higor Gusmão
O tema do “cuidado de si” – a que fora dedicado por Michel Foucault um curso no Collège de France (A
hermenêutica do sujeito) e o último volume de História da sexualidade – por
vezes nos foi tão pertinente como hoje. Face à era do capitalismo cognitivo.
Diante do sequestro da vida, curiosamente promovido pelas mesmas instancias
implementadoras do moderno Estado democrático de direitos.
Partindo
do “Banquete”, dialogo platônico em que Sócrates direciona Alcibíades para uma
prática de si enquanto ainda jovem, e comparando-o com o pensamento estoico do
primeiro e segundo século da nossa era, Foucault nos relata modificações no
entendimento do “cuidado de si”. A primeira está na “conversão de si”. Se no
texto platônico a ideia de uma existência voltada para si aponta para o
“elemento divino” (ser, substância, alma), uma essência que se encontra no
individuo, nos textos de Sêneca e Marco Aurélio (figuras muito presentes na
“hermenêutica do sujeito”) o voltar-se a si não encontra outro fim a não ser a
vontade de coerência consigo mesmo. Ou seja, não se busca um fundamento natural
do sujeito e no sujeito, mas tão somente uma relação para consigo próprio.
Todavia,
apesar da divergência encontrada por Foucault a respeito das noções de “cuidado
de si” entre o socratismo e o estoicismo que floresceu no apogeu de Roma, aqui
é possível constatar um ponto singular entre essas duas correntes de
pensamento, a sua característica propriamente comunitária. Ao
contrário de uma perspectiva puramente individualista, o “cuidado de si” não se
opõe ao cuidado da cidade, “como se vê pelo exemplo do próprio Sócrates, cuja
razão de viver é ocupar-se com os outros” [1]; com relação à escola estoica,
“nenhuma tem mais amor pelos homens e mais atenção pelo bem comum como a
proposta de ser útil, de atender com seu auxílio aos interesses não somente
seus, mas de todos, em geral, e de cada um, em particular” [2].
No
livro sobre o uso dos prazeres, Foucault articula uma longa análise sobre como
gregos e cristãos realmente construíram o sujeito, ele enfatiza que por um lado
à afrodisíaca da civilização clássica e por outro “o controle da carne”
medieval constituem seu polo central. Tal evidência histórica fez revelar um
episódio muito interessante, a partir do advento do cristianismo, o Ocidente
não parou mais de dizer: “Para saber quem és, conhece teu sexo”. O sexo
constituiu-se como o núcleo onde se aloja nossa identidade, “verdade profunda
de sujeito humano”. Propensão contrária, diga-se de passagem, à volúpia dos
helenos que viam no orgianismo uma necessária beberagem curativa. Segundo
Nietzsche, “essa aparência da ‘serenojovialidade grega’ foi o que antes
revoltou as naturezas profundas e terríveis dos primeiros quatrocentos anos do
cristianismo” [3].
De
fato, o projeto de “colocação minuciosa do sexo em discurso” teve seus
primórdios no interior da tradição ascética e monástica. No entanto, a partir
do século 17, fez-se desse projeto uma regra para todos, no interior de um
dispositivo complexo de saber-poder. Com o nascimento das sociedades
industriais e a implantação de suas instituições foram necessários
procedimentos e mecanismos de individualização e de constituição das
identidades coletivas já preparadas pelo pastorado cristão. O poder pastoral
enquanto tecnologia de governo foi fundamental para a organização dos Estados
nacionais modernos.
É
justamente no quadro dos processos de secularização dos Estados modernos que
teria se processado a implantação, difusão e multiplicação das técnicas
pastorais no âmbito laico dos aparelhos de Estado. Nietzsche observa muito bem,
“onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote
que o organizou” [4].
Quanto
a isso, Foucault, em “O sujeito e o poder”, teria podido apoiar-se em Nietzsche
para fazer sua investida teórica sobre as práticas pastorais, em especial a
pastoral cristã. A prática inventada pelos primeiros padres da Igreja implica
num sacrifício de si, num sacrifício do corpo. O mal-estar fisiológico é
estabelecido como produto de primeira ordem dentro da doutrina cristã. “O
cristianismo necessita da doença, do mesmo modo que a cultura grega necessita
de uma superabundância de saúde – a verdadeira intenção de todo o sistema da
salvação da Igreja é tornar as pessoas doentes” [5].
Os
padres modernos constituíram-se como uma espécie de
gerente dos desejos e afetos humanos. A relação agonística de si para consigo
próprio, prática habitual e necessária para “cuidar de si” entre os gregos,
agora é deixada de lado; através do sacerdote, o homem é aconselhado a se
abdicar das forças ativas que traz dentro de si. Os desejos da carne devem ser
renunciados. Aqui o corpo só é tolerado quando submetido a “vontade de Deus”,
em suma – “palavra para as condições sob as quais os sacerdotes atingem o
poder, e com as quais eles mantêm o seu poder – tais conceitos encontram-se no
fundo de todas as organizações sacerdotais de governo” [6]. A gestão dos desejos e
afetos humanos é o que Foucault designou como biopolítica.
Contudo,
o tema do “cuidado de si” não é, pois, simplesmente, o tema do poder e de sua
capacidade de construir a subjetivação, mas também, e, sobretudo, o da resposta
ao poder, da resistência por parte do sujeito: resiste-se somente quando se tem
a capacidade de construir-se como sujeito ético e moral. Hoje, o tema do “cuidado de si” reproduz-se nas
lutas sócias pelo direito à vida, ao corpo, à saúde, à satisfação de
necessidades, ao prazer, bandeiras coletivas na luta contra o biopoder.
Aprender a se amar é um exercício para hoje e
amanhã. Nada obstante, o único cuidado a nós
ensinado foi o cuidado moral, o cuidado com a vida fraca, malograda, reativa. O
moderno homem eunuco consentiu em carregar sobre os ombros os valores mais
pesado a fim de se manter arraigado ao chão feito um olimpo de mármore, levando
uma vida ingrata e inquieta; muitos se dedicam voluntariamente a bajulação,
outros se esforçam para obter
lucro, propriedades, desejos produzidos por um sujeito de interesses inoculado
em nós, sem limites de riqueza, glória, não favorecendo um voltar-se a si.
Os
acidentes não se encontram fora da vida, fazem parte dela. Sêneca aconselha:
“Confia em ti. Alegra-te contigo. Afasta-te o quanto podes das coisas alheias.
Dedica-te a ti mesmo. Não te sensibilizes com prejuízos matérias. Enfim,
procura interpretar com benevolência os fatos adversos.” [7] Pois não está e nunca
esteve em nosso poder evitar o ineditismo de cada instante existencial que
desqualifica toda pretensão a uma vida sem constrangimentos.
A vida tornou-se tão
genérica, visto que fomos ensinados a nos jogar fora a cada instante
existencial, que assim que temos tempo livre das ocupações sociais nos
entorpecemos, seja por vias químicas, seja com amor e ódio, também formas de
torpecer. Tentativas embaraçosas de escapar dos problemas que a natureza nos
estabelece, ou, de criar os próprios problemas, postura tão necessária quanto à
de enfrenta-los.
As
práticas do “cuidado de si” que Foucault vai encontrar nos estoicos remetem,
acima de tudo, a tranquilidade, a serenidade e a harmonia para consigo próprio.
“As pessoas isolam-se em retiros nos campos, nas praias, nas montanhas.
Tu também costumas desejar isso. Desejo insensato, já que poder, quando bem
quiseres, retirar-se para dentro de ti mesmo” [8]. Vamos,
ouça as sábias palavras de Marco Aurélio e apressa-te, pensas o quanto mais rápido
tu serias se perseguido por um inquisidor espanhol e escolha para ti o domínio
sobre ti mesmo. “É que não te amas a ti mesmo. Se o fizesses, amarias também a tua
natureza e seus desígnios” [9].
Arte de Egon Schiele
Todos nós exprimimos uma experiência de si. Torna-te
quem tu és, ou, como sugeri Foucault, hoje, nega-te a ser quem tu és. Lembre-se
de que a pedra de mármore mais nobre deve ser
moldada, esculpida, estilizada a golpes de cinzel, agora, “o homem não é mais artista,
tornou-se obra de arte” [10].
Referências Bibliográficas
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade vol. II: o uso dos prazeres. –
São Paulo, SP: Paz e Terra, 2014.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade vol. III: o cuidado de si. –
São Paulo, SP: Paz e Terra, 2014.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. – São Paulo, SP: Martins
Fontes, 2006.
HADOT,
Pierre. O que é a filosofia antiga?. – São Paulo, SP: Edições Loyola, 2011.
MARCO AURÉLIO. Meditações. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e
pessimismo. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
NIETZSCHE,
Friedrich. Genealogia da moral, uma polêmica. – São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 2009.
NIETZSCHE,
Friedrich. O Anticristo. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2012.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Tratado sobre a clemência. – Petrópolis, RJ: Vozes,
2013.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Da vida retirada; Da tranquilidade da alma; Da
felicidade. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.
[1] O
que é a filosofia antiga?, pág. 67.
[2]
Tratado sobre a clemência, pág. 45.
[3] O
nascimento da tragédia, § 11, pág. 72.
[4] Genealogia da moral, III, 18,
pág. 116.
[5] O Anticristo, §
51, pág. 88.
[6] O Anticristo, § 55, pás. 98.
[7] Da
tranquilidade da alma, XIV, pág. 76.
[8]
Meditações, Livro quarto, III, pág. 33.
[9]
Meditações, Livro quinto, I, pág. 43.
[10] O
nascimento da tragédia, § 1, pág. 28.