por
Junior Bonfá
A
escola dos cínicos emergiu no último período da filosofia antiga, isto é, no período helenístico, quando a Grécia
esteve sob o poderio do império Macedônio e Romano. As conquistas de Alexandre
fizeram mesclar populações e culturas, desestruturando a dinâmica social vigente até então, organizando
um domínio imperial que destruiu a pólis
grega. O centro político da Grécia fora suprimido, deixando os filósofos da
época sem sua principal referência.
Neste
cenário cosmopolita é que surgiram as ditas filosofias helenísticas, sendo
estas conectadas por uma busca pela felicidade interior. Já não se tratava de
uma busca pelo princípio do ser nas profundidades - a fim de descobrir
aquilo que está por trás de tudo -, como fizeram os pré-socráticos, e nem mesmo a
busca pela verdade nas alturas das ideias elevadas - fugindo das profundezas da
caverna -, como fizera Platão. As filosofias helenísticas buscaram, por sua vez,
estabelecer uma ética da existência; uma prática de si para melhor viver o
acontecimento[1]; filosofias da lateralidade, portanto, filosofias da superfície cujas reflexões “não procuram a vida em outro lugar que não seja no próprio momento em que
vivem.[2]”
A
escola cínica, entre as filosofias helenísticas, foi aquela que levou ao
extremo a tese socrática de que o homem deve desprezar os bens materiais e conhecer
a si mesmo. Mas o interessante é que, ao contrário de Sócrates, os cínicos
foram além da mera dialética com a coragem de mostrar sua verdade com a própria
vida. A linguagem das palavras não bastava aos cínicos para tornar pública a filosofia em
que acreditavam; eles faziam de si cobaias de uma exigência física de sua
verdade. Os cínicos fizeram de sua filosofia ética uma práxis contínua na
própria existência, marcando no próprio corpo o exemplo visível do cuidado de
si.
No
seu último curso no Collège de France, Foucault centrou seus estudos à questão da
coragem da verdade (parrhésia), bem como a questão do governo de si e dos outros, destacando o
pensamento cínico:
“A
verdade precisa encarnar nos comportamentos e nas ações, e somente no corpo
acontece a irrupção da diferença no campo da vida. A diferença da vida
filosófica cínica é que nela transforma-se o corpo em palco para dar
visibilidade à verdade de si para consigo e para com os outros[3]. ”
A
verdade dos cínicos, porém, é aterrorizante às convenções sociais, morais e
políticas, uma vez que confere aos homens a obediência às regras da natureza; a
aceitação da animalidade do desejo tal como ele é. Os verdadeiros cínicos
viviam assim, como animais, como cães, chocando
a sociedade com seu modo de existir “público, visível, espetacular,
provocativo e escandaloso”[4].
Arte de David Palumbo
Diógenes
de Sínope (c. 413-327), por exemplo - o pensador mais destacado da escola
cínica, conhecido como o cão, ou Sócrates louco - vivia na rua, em um barril,
sem família ou pátria, isolado em um sujo recinto, praticamente despido de
vestes, sempre a espreita para atacar alguém a fim de revelar sua verdade. Diógenes fazia
aos olhos dos outros o que somente os animais ousam fazer, e que mesmo os
homens mais vulgares teriam vergonha e procurariam esconder.
“É
precisamente essa disposição a fazer de si próprio um objeto de ridículo, de
praticar atos impróprios, vergonhosos ou ridículos, que dá a Diógenes o status
de autoridade moral cínica, de alguém obediente a um outro conjunto de regras –
as da natureza. Caso contrário, ele seria apenas mais um filósofo fazendo
discursos inflamados para multidões[5].”
“O
cínico é um homem de pés nus e sujos, barba crescida, sempre apoiado num
bordão, vestindo um velho manto, sem casa, sem família, homem do mundo e
errando pelo mundo, que opta pela pobreza e pela mendicância, postado nas
esquinas e porta dos templos, para interpelar as pessoas e dizer-lhes a verdade[6]. ”
Esse
distanciamento das relações familiares, políticas, cívicas, etc., pode nos
parecer egoísta e sem sentido prático, mas os cínicos se firmam na tese[7] que
somente assim eles poderiam cumprir sua tarefa maior que é zelar pela ética
universal, isto é, pelo cuidado de todos os homens. Pare eles somente com este desprendimento
dos vínculos é possível evitar que sua prática seja agenciada pela política de
um grupo especifico. “O cínico é portanto responsável pela humanidade
inteira”[8].
A
filosofia e a prática cínica - se é que podemos separar - fora alvo de diversas
críticas ao longo da história da filosofia, as quais alegam se tratar de uma
teoria fraca. Pode até ser. Todavia, ninguém pode negar o mérito que os cínicos tem ao
fazerem de si uma prova de sua teoria, o que é louvável e pouco visto entre os supostos
intelectuais que detém as titulações que “asseguram” o saber
verdadeiro.
O
que mais vemos por ai são pessoas que
adoram levantar o dedo e ostentar um discurso teórico para mostrar quão inteligentes
e entendidos sobre o assunto são, mas que na prática fazem o oposto: como um nietzscheano
que é moralista; um esquizoanalista que é viciado em identidade; ou um
espinosista que é cristão.
Este texto esboça o pensamento cínico não para empurrar a teoria do cinismo, mas para mostrar que temos muito a aprender com a maneira que eles exprimem seus saberes. Que este texto sirva para atiçar o leitor a fazer de si um exemplo público daquilo que acredita.
Este texto esboça o pensamento cínico não para empurrar a teoria do cinismo, mas para mostrar que temos muito a aprender com a maneira que eles exprimem seus saberes. Que este texto sirva para atiçar o leitor a fazer de si um exemplo público daquilo que acredita.
[1]
Cf. "Das três Imagens de Filósofos", capítulo XVIII do livro Lógica do Sentido, do Deleuze.
[2] TEIXEIRA,
Gilson RM. PARRESIA E IMAGEM EM DELEUZE E FOUCAULT. Eje 3: La Filosofía de la
Educación y sus problemas actuales, p. 105.
[3] FOUCAULT,
Michel. A Coragem da Verdade: O Governo de si e dos outros II. (Tradução de
Eduardo Brandão). São Paulo: Martins Fontes, 2011.
[4] FOUCAULT.
Discurso e Verdade: Parresia, p. 74.
[5] BRANHAM,
R. Bracht. Desfigurar a moeda: A retórica de Diógenes e a invenção do cinismo,
p.95-120. In: Marie-Odile GOULET-CAZÉ e R. Bracht BRANHAM (Orgs.). Os Cínicos:
o movimento cínico na Antiguidade Clássica e o seu legado. (Tradução de Cecília
Camargo Batalotti). São Paulo: Loyola, 2007. p. 118.
[6] WELLAUSEN,
Saly. Michel Foucault: parrhésia e cinismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 8(1): 113-125, maio de 1996, p. 118.
[7] Cf.
TEIXEIRA, Gilson RM. PARRESIA E IMAGEM EM DELEUZE E FOUCAULT. Eje 3: La
Filosofía de la Educación y sus problemas actuales.
[8] DELEUZE,
Gilles. Conversações. 2. ed. São Paulo: Ed 34, 2010, p. 266.