Higor Gusmão
Aos homens ocupados. Desejam desesperadamente afastar-se da morte (como se o
fosse possível). Querem-na como a linha tênue do horizonte. Sempre distante.
Ah! Mas que tola pretensão humana, demasiada humana. Se ao menos a maioria
deles soubesse que é preciso estar preparado antes para a morte do que para
a vida, não se portariam feito criança pirracenta implorando para ficar um
pouco mais chegado o momento do infindável lamento fúnebre. Sabias palavras a
do estoico Sêneca:
“Ninguém é tão ignorante que não saiba que um
dia deverá morrer; no entanto, quando a hora se torna próxima, ele hesita,
treme, implora. Não te pareceria o mais estúpido dos homens aquele que chorasse
por não ter vivido milhares de anos antes? Igualmente estúpido é quem chora por
não viver daqui a milhares de anos. São situações idênticas: não serás como não
foste, nenhum dos dois tempos te pertence. ” [1]
A vida é a tradução mais
perfeita da finitude do tempo em nossa trajetória. A morte é inerente à vida.
Paradoxo. Pois viver, antes de tudo, é viver uma trajetória temporalmente
definida. E uma vez que a vida humana teria como principal atributo a finitude,
a temporalidade seria a condição primeira de reflexão sobre a melhor maneira de
viver. Reflexão sobre a vida que vale a pena ser vivida.
Ora, se a morte é, moralmente, um assunto
quase intocável para nós, os estoicos aproximaram-se dela através do melete thanatou “exercício da morte”,
prática habitual entre o filósofo romano Sêneca e o imperador Marco Aurélio. Uma
prática que não os levará para a morte, queridos amigos, mas certamente lhes
ensinará a morrer. “Um único dia é o tamanho da vida” [2];
eis, de maneira resumida, o objetivo de tal prática. A manhã como representação da nossa infância e adolescência, à tarde
como o período da maturidade à velhice, e a noite, fim do dia, como o momento
em que se deve olhar para trás e com alegria se entregar ao sono (a morte como
representação) pelo dia bem vivido. Ou seja, todo instante deveria ter o
sentido de eternidade, jamais nos arrepender de um gesto, ato ou palavra da
nossa vida, mas toma-los como aprendizagem.
Os exercícios da cultura de sim entre os estoicos, tal como nos mostrou Michel Foucault em suas reflexões ético-políticas a respeito da moral greco-romana, compreendiam tanto um domínio do corpo como da alma... Entendida aqui como aquilo que nos move e faz pensar. O imperador Marco Aurélio já advertia com prudência: “Não permita tua alma maldizer do destino no presente nem temê-lo para o futuro.” [3] Posto que, agitada por vagos pensamentos, a alma nos tornaria escravos dos males pósteros, em especial o medo da morte, não favorecendo desse modo um voltar-se a si.
Para
Foucault, práticas como o pensamento sobre a morte proporcionam melhor
aproveitamento da vida. Todavia
nossa civilização é vítima de uma interpretação socrático-platônica do mundo.
Essa morte conhecida tradicionalmente, na qual a alma imortal finalmente se
libertaria após um perecimento total do corpo, não passa de uma ilusão, para
falar ao modo de Espinoza, de uma ficção, para falar ao modo de Nietzsche. A
verdadeira morte é aquela que nós vivenciamos a cada instante de nossas vidas. A
cada acontecimento de nós mesmos, como jatos de singularidade, onde afetos
substituem afetos ininterruptamente. Morremos incessantemente a cada uso que
fazemos da linguagem, esse meio privilegiado de efetuação humana. Uma prática
que simplesmente joga fora relações, afecções, percepções.
Arte de Alexandra Levasseur
Ah!
Como são sábios esses estoicos, vamos, perscrutem as “Meditações” de Marco
Aurélio, de lá sairão sentenças tão nobres quanto esta:
“Que é
a morte? Se a considerarmos em si só, se, por uma abstração mental a separarmos
dos fantasmas que lhe associamos, veremos que não passa de uma operação da
natureza. É infantilidade temer uma operação da natureza.” [4]
Afinal, para o estoicismo a natureza é a
referencia positiva a partir da qual o homem deve agir e se inspirar. O homem
dificilmente irá superar a natureza. Essa era a mentalidade entre gregos e romanos.
Entretanto, quando chega à modernidade esse pensamento se inverte. Os homens acreditam
que só poderão viver bem a partir do momento em que eles domesticarem a
natureza, suas convulsões, suas catástrofes, seus prodígios, e isso inclui sua própria natureza,
sua pulsões, seus desejos. Uma postura totalmente estranha, diga-se de
passagem, aos valores mais altos
e nobres da antiguidade.
Mas
voltemos ao “exercício da morte”. A palavra “exercício” utilizada para designar o cultivo de si dentro do
pensamento estoico tem amplo sentido, não a coloquemos no estreito limite de
uma atividade puramente prática, como bem conhecemos no mundo pragmático de
hoje. A lição ensinada por Zenão de Cítio, Crisipo, Epiteto vai além de uma simples
praxe, mais do que isso, pressupõe uma reconciliação com Crônos, com o tempo do
mundo, o presente.
Por fim, sinta-se interrogado por Sêneca,
querido leitor, e tenha um bom “exercício de morte”:
“Podes
me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se
morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do
futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou
pertence à morte.” [5]
[1]
Aprendendo a viver LXXVII, Do suicídio, p.
73-74.
[2]
Aprendendo a viver, XII, Da velhice p. 21.
[3] Meditações, Livro segundo, II, p. 21.
[4] Meditações, Livro segundo, XII, 24.
Referências bibliográficas:
Marco Aurélio. Meditações; tradução Alex Marins. – São Paulo, SP: Martin
Claret, 2012.
Lúcio Anneo Sêneca. Aprendendo a viver; tradução de Lúcia Sá Rabello. –
Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.