por Higor Gusmão
“A consciência é a última e derradeira fase da
evolução do sistema orgânico e, por conseguinte, também o que há de menos
acabado e de menos forte neste sistema. Do consciente provém uma multidão de
enganos” – Nietzsche, A Gaia Ciência, Livro primeiro, §11, pág. 44.
Enquanto
a modernidade discutia com veemência o “cogito ergo sum” [penso logo existo]
cartesiano, Nietzsche se dispôs a trilhar uma direção oposta aos caminhos
percorridos até então por todos os sistemas filosóficos de pensamento em sua
época ao propor uma discussão sobre as forças ocultas que viriam constituir o
homem. Em suas obras, o pensador alemão denuncia a fadiga e o engodo causados
pela consciência e, de modo magistral, nos apresenta o campo da existência a
partir de uma coesão de forças, ao contrário da estruturação de formas, estas tão aspiradas pelo pensamento moderno emaranhado aos moldes do pensamento
socrático-platônico.
Destarte,
como nos mostra Deleuze, “o conceito de força é portanto, em
Nietzsche, o de uma força que se relaciona com uma outra força [1]”,
necessariamente. A
consciência, enquanto resultado desse jogo de forças em relação, só apreende o
efeito de nós mesmos e jamais poderia se constituir como objeto de investigação
para o conhecimento do mundo e do próprio homem. O
fato de o homem ter feito do “eu”, do “ser”, do
“nada” – no limite, conceitos que constituem as “malhas” da gramática –
objeto de investigação, nisto acabou lançando a vida numa espécie de delírio, carência,
miséria afetiva.
“A consciência se desenvolveu sob a pressão da
necessidade de comunicação, que a principio era necessário e útil somente nas
relações de homem para homem (entre o que manda e o que obedece) e que só se
desenvolveu na medida desta utilidade. A consciência é apenas uma rede de
comunicação entre os homens...” – Nietzsche, A Gaia Ciência, Livro quinto, §354, pág. 195.
O
adestramento do indivíduo, necessário para o convívio social, surge da
necessidade de uma linguagem que permite a comunicação com os demais. Deleuze
observa de modo impecável que “a linguagem não é mesmo feita para que se acredite
nela, mas para obedecer e fazer obedecer [2]”. O
homem, o mais medroso e desprotegido dos animais, necessitava de seu semelhante
e daí surge a consciência de si.
Para
Nietzsche, a vida em sociedade, embora tolha os instintos mais primários, tem
uma ambiguidade fundamental, já perceptível na Genealogia da moral. A saber, o
homem só se torna alguém digno de interesse por meio desse processo de
martírio, castração – “jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício,
quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória [3]”,
resultado, por uma vez, de uma “consciência moral”, cuja gênese está na “troca”
necessária entre os indivíduos.
Neste
ponto podemos, de forma interessante, ir de encontro aos estudos sociológicos.
Trocar objetos seria um fato social, nos diz o antropólogo francês Marcel Mauss;
trocar é “mesclar almas”, em razão dos objetos usados para troca virem
carregados de uma simbologia afetiva e misteriosa, devido
o carácter sobrenatural (metafísico) que impregna as relações sociais.
“Meu pensamento, como se vê, é que a consciência
não pertence essencialmente à existência individual do homem, mas, ao
contrário, à parte da sua natureza que é comum à totalidade do rebanho.” – Nietzsche,
A Gaia Ciência, Livro quinto, §354, pág. 195-196.
Por meio de suas investidas teóricas, Nietzsche nos mostra que não é da
natureza do homem – utilizando o termo “natureza humana” com toda cautela que
se faz necessária – ser um animal gregário. Ao modo de Spinoza, outro grande
pensador que, antes mesmo de Nietzsche, revelou o coliseu de afetos por trás do
aparente véu da consciência, a Natureza só é divina por conceder a cada uma de
suas partes a mesma capacidade que tem o Todo para produzir realidade.
Isto é, todos nós possuímos a plena capacidade de criar mundos próprios.
Mundo que não necessitam partir de uma linguagem semiótica para terem
existência. Existimos também ao utilizar a velocidade e a vibração de nossos
corpos, não precisamos de nenhum rebanho.
Deixar para trás duras paisagens de osso, talvez seja a grande lição que
Nietzsche tenha nos deixado ao destruir a golpes de martelo os pilares que
sustentavam o pesado panteão da moral, da consciência embusteira. Aquele que se
põe em estado de poder captar os inefáveis balbucios do subconsciente, ao ponto
de poder dispensar a colaboração da razão discriminadora, abre caminhos à
exploração para aquilo que não possui formas, mas fluxo; aprende a ver na
força, na potencia uma aliada.
[1]
Nietzsche e a filosofia, pág. 6.
[2]
Mil Platôs vol. 2. Pág. 13.
[3]
Genealogia da moral, II, 3 , pág. 46.
Referencias
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. – Rio de Janeiro, RJ: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.2. – São Paulo: Ed. 34, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.