Foucault – o ambito laico dos aparelhos de Estado sob as tramas do poder pastoral

por Higor Gusmão

Foucault não é daqueles pensadores que participam do culto ao “Estado de direitos”. Em sua perspectiva, onde toda manifestação singular é vista como atentado e ameaça contra a coesão social, devendo ser mantida as margens, encarcerada, o que se pode esperar é o empobrecimento cada vez maior dos universos autônomos de produção cultural. Em suas obras como História da Loucura, O nascimento da Clínica, Vigiar e Punir o pensador posiciona-se em riste contra esse grande Leviatã a que chamamos República Democrática.

As instituições burguesas operam em nossas sociedades como verdadeiras máquinas de sequestro, pontua Foucault (em Vigiar e Punir ele falará da “máquina-prisão”, mas também da máquina-escola, da máquina-hospital...).  Sabemos, afinal, do que são capazes essas velhas senhoras de origem inglesa, elas nos tolhem o contato com a superfície. Separam-nos da experiência do tempo e do acontecimento. Contaminam todo o solo fértil da vida tornando-a estéril, insuficiente, miserável.

De outro modo, ao submeterem o corpo a uma função, a uma finalidade, as instituições do capital inserem certa vontade de verdade ou ideal em nosso discurso, “como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes”.[1]

Igualmente, verifica Foucault, operava a funesta tradição dos sacerdotes em nossas sociedades, devido a essa relação especifica de poder “está ligada à produção da verdade – a verdade do próprio indivíduo”.[2]  – Renuncie todos os teus pecados (desejos), você deve por a verdade de Deus em seu coração; assim o diz o sacerdote.

Tal observação é o que faz Foucault (eventualmente seguindo uma esteira nietzschiana) direcionar suas investidas teóricas sobre as práticas do poder pastoral em nossas sociedades, uma vez que, apesar do processo de laicização promovido sob a égide do liberalismo burguês, tal prática inventada pelos primeiros padres da igreja cristã ainda viria se configurando no âmbito laico dos aparelhos de Estado. O pensador nota que entre os principais processos de subjetivação do sujeito moderno encontram-se fortes vestígios da pastoral cristã, igualmente, como diria Nietzsche, por trás de cada sim a Deus encontra-se um não à vida.

Para Foucault, “o poder do tipo pastoral, que durante séculos – por mais de um milênio – foi associado a uma instituição religiosa definida, ampliou-se subitamente por todo o corpo social; encontrou apoio numa multiplicidade de instituições”.[3] Até mesmo instituições ancestrais como a família eram chamadas a cumprir funções pastorais. As cartas régias [em francês, lettres de cachet] como observa o autor, em Vigiar e Punir, eram solicitadas muito mais por um membro da família ou amigo próximo do que propriamente pelos funcionários da guarda real.


Arte de Brandon Kidwell

A evidência evocada pelo pensador nos mostra, sobretudo, como as sociedades modernas – organizadas em bases eclesiásticas – se aproveitaram ao máximo da habilidade sacerdotal para promover individualização e organização das multidões em rebanhos de corpos docilizados. Como o diz Nietzsche, “onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que o organizou”.[4]

Todavia, o que Foucault percebeu de modo magistral é o fato dessa prática que os padres cristãos inventaram, e que, posteriormente, seria a mesma técnica utilizada na implementação do Estado moderno, implicar, acima de tudo, no sacrifico de si, no sacrifício do corpo e do desejo. Uma prática contrária, diga-se de passagem, aos cuidados com a vida, a estilização de si que Foucault irá encontrar na cultura grega. A vida aliada a uma ética, e não a uma moral.

 Diante desse cenário o pensador francês nos propõe: “temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos”.[5] Afinal, um corpo estriado através do mecanismo panóptico dificilmente cooperaria na formação de verdadeiras máquinas de guerra (fazendo uso de um termo deleuziano) sem correr o risco de reproduzir os aparelhos de captura do Estado.

Hoje, mais do que nunca, tornou-se imprescindível a estilização da vida. A gerência dos próprios desejos e afetos. A recusa em assumir (consumir) compulsoriamente identidades enlatadas que diariamente nos são empurradas goela a baixo. Fazer do corpo e da existência algo mais interessante, e não apenas meios para se atingir uma verdade ou ideal. O "cuidado de si", queridos leitores, talvez seja a grande lição de casa que Foucault tenha nos legado, a ética como único caminho para nos livrarmos das tiranias do saber/poder, das prisões do sujeito e do império da estrutura.



[1] A ordem do discurso, pág. 9.
[2] O sujeito e o poder, pág. 237.
[3] O sujeito e o poder, pág. 238.
[4] Genealogia da moral, III, §18, pág. 116.
[5] O sujeito e o poder, pág. 239.


Referencias Bibliográficas:

FOUCAULT, MA ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. – São Paulo: Edições Loyola, 2014.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral, uma polêmica. – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.