Por Rafael Leopoldo* e Leandro Colling**
A tradução e publicação do livro Pelo cu: políticas anais no Brasil é, antes
de mais nada, uma ação política. Em primeiro lugar, coloca-se à disposição um
livro vinculado ao que hoje se acostumou denominar de estudos ou Teoria Queer,
cujas obras principais ainda carecem de traduções para a língua portuguesa.
Apesar disso, a produção brasileira de livros e artigos nos estudos queer é
significativa e em franca ascensão. Em segundo lugar, este livro faz uma
crítica feroz — profunda e sem perder o humor — a um sistema heterocentrado
levando em conta a questão da passividade. O terceiro aspecto consiste no
momento desta tradução e publicação. O Brasil é o país latino-americano que
mais assassina pessoas LGBT, em especial travestis. Além disso e também por
isso, a política brasileira parece, a cada momento, se esquecer das potencialidades
de Junho de 2013 e se apresenta com o pior da direita, desde a pompa de uns
pondés, aos ruídos de reinaldos azevedos, a política do ódio dos bolsonaros,
até as imposturas dos olavos de carvalho.
Mas a escrita e tradução deste livro, que começa com um insulto, o
famoso “vai tomar no cu”, além de política, colabora com uma significativa
produção de conhecimento que impacta e enfrenta determinados saberes e se filia
a outros. Por exemplo: o que esse insulto significa para quem tem o ânus como
um órgão sexual? Quem tem o poder de determinar quais partes de nossos corpos
devem ser considerados como órgãos sexuais? O que pode sair de um cu além de
excrementos? Como é possível pensar a partir do cu ou pelo cu? Perguntas como
essas perpassam a leitura do livro e nos levam para produção de uma ética da
passividade. Para fazer isso, o livro retira a analidade do campo privado e a
coloca no campo social e político e assim gera não somente uma analética, mas
toda uma gama de possíveis políticas anais que são extremamente necessárias. Se
há tanto preconceito, se há um dispositivo que decide sobre a vida e a morte de
determinadas pessoas, se há tanto pânico em relação a qualquer possibilidade
existencial que fuja do ideal estanque de uma feminilidade e de uma masculinidade
de mármore, são necessárias políticas anais que possam esquizofrenizar o que
alguns têm o orgulho de chamar de identidade. Esfarelar essa identidade, seja
apontando-a como sem nenhum fundamento biológico, ou ainda, mostrando-a como
uma ficção social, poderia nos tornar menos segregativos, menos fincados a uma
ilusão de um essencialismo heterocentrado e suas identidades molares.
Pelo cu: políticas anais é o livro mais recente de Javier Sáez com
coautoria de Sejo Carrascosa. Sáez é tradutor de diversos livros, autor de
Teoria queer e psicanálise e um dos organizadores de Teoria queer: políticas
lesbianas, bichas, trans, mestiças. Já Carrascosa se identifica como um
autodidata. Em comum, ambos possuem uma longa amizade e trajetória do ativismo
queer espanhol. É no trânsito dos saberes da Sociologia, da Filosofia, da
Teoria Queer e da Psicanálise que surgem algumas indagações de uma ética da
passividade, ou ainda, como preferem os autores, uma analética.
Na busca de uma origem a respeito da temática da analidade é sempre
possível tentar buscar um ponto primário mais distante. No nosso caso, talvez
fosse possível encontrá-lo na poesia, no romance, na pintura, de forma mais
contemporânea na fotografia ou ainda no cinema. Todavia, já nas primeiras
páginas de Pelo cu localizamos uma aliança teórica vital, já que o livro é
dedicado a Paco Vidarte, autor da obra Ética bicha, um belo e radical livro de
filosofia e a grande influência dos autores. Encontramo-nos, então,
essencialmente, diante de uma abordagem filosófica da analidade e se expormos
algumas referências anteriores a obra de Sáez e Carrascosa não nos espantaremos
com a valorização do ânus como objeto teórico e/ou político. Iremos citar aqui
apenas três dessas referências: a obra de Deleuze-Guattari, Guy Hocquenghem e
Paul B. Preciado.
A princípio o tema do cu pode parecer esdrúxulo e espantoso, pois
poderíamos vê-lo sem nenhuma dignidade filosófica, já que se costuma ponderar
filosoficamente de forma mais contundente sobre a alma, sobre o etéreo, sobre o
espírito[1] etc., e deixa-se de lado toda a complexidade da corporeidade e seus
elementos, do prazer com o corpo até a estranheza e desconforto com ele. Além
disso, em regra, quando pensamos o corpo damos privilégio epistemológico para
algumas partes e não para outras, sempre um maior valor para a cabeça e uma
desvalorização do baixo-ventre. Dessa forma, compreendemos que há toda uma
arquitetura política do corpo, as partes dignas e as partes indignas, as partes
desejáveis e as indesejáveis. O que há de novo na obra de Javier Sáez e Sejo
Carrascosa é, exatamente, uma densa e importante produção teórica tendo como
temática exclusiva o ânus. Daí podemos apontar a primeira referência
filosófica, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, principalmente o primeiro tomo da
sua obra O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.
No livro O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, há um comentário que gera
ecos importantes no tema da analidade e que vai afetar uma gama de autores
como, por exemplo, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado. Trata-se aqui de afirmar
que o primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social, foi o
ânus. Essa afirmação aparece no terceiro capítulo d’O anti-Édipo, intitulado
“Selvagens, bárbaros, civilizados”[2], parte da obra deleuzo-guattariana que faz
uma conexão com o saber antropológico e, também, produz uma crítica à
Antropologia. O contexto da citação é a argumentação de que o problema do
socius não é a troca — como proposto pela antropologia de Marcel Mauss -, mas
marcar os corpos, codificar os fluxos — como proposto pela filosofia de
Friedrich Nietzsche. Deleuze e Guattari trocam Mauss por Nietzsche, a
Antropologia pela Filosofia[3] para afirmar que a máquina territorial primitiva
funciona por meio de codificação de fluxos que investe nos órgãos e na marcação
dos corpos.
Para Deleuze e Guattari, o ânus serve como modelo para a privatização.
Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a ser colocado fora do campo
social e, assim, tem-se um desinvestimento do órgão e há a constituição de
pessoas privadas, centros individuais, ou seja, pessoas globais, eus
específicos e discerníveis. O ânus já não é mais investido coletivamente, mas
desinvestido e privado. Muda-se do intensivo com seus objetos parciais para o
extensivo com a formação de um eu. Sobre essa criação político-arquitetônica do
corpo podemos citar um agudo comentário de Paul B. Preciado: “foi necessário
fechar o ânus para sublimar o desejo pansexual transformando-o em vínculo
social, como foi necessário fechar as terras comuns para assinalar a
propriedade privada”[4]. Hocquenghem, de outra forma, diz que ao descobrir o
trabalho como fundamento de valor, a economia política burguesa o fecha
imediatamente na forma de propriedade privada dos meios de produção. Freud
descobre a libido como fundamento da vida efetiva, e o fecha imediatamente na
forma de privatização edipiana familiar[5].
Guy Hocquenghem lê O anti-Édipo e, por meio dessa leitura, produz a sua
obra O desejo homossexual, escrito nos anos 70 e no seio da Frente Homossexual
de Ação Revolucionária (FHAR), um espaço que se distanciava do discurso ameno
dos gays de uma classe média branca e das feministas liberais. Juntamente com o
FHAR estão as bichas, as travestis e uma gama de outros que não se
identificavam com o bom feminismo da época. É necessário lembrar que essas
fissuras nos movimentos é que vai gerar, nos anos 80/90, a Teoria queer.
Hocquenghem, n’O desejo homossexual, está em diálogo com a efervescência
política da época, com a psicanálise freudiana e lacaniana, mas, também, como
já salientado, recebe uma forte influência deleuzo-guattariana. Hocquenghem faz
uma análise acurada da homossexualidade e de como ela foi relacionada a
categorias religiosas — crime contra natura -, categorias jurídicas — relação
da criminalidade e da homossexualidade -, categorias médicas — a
homossexualidade como enfermidade, perversão etc. Mas, além disso, como ela
está conexa com o capitalismo e o surgimento da família burguesa. N’O
anti-Édipo já havia toda uma crítica ao familismo. Não obstante, o que nos
parece interessante em Hocquenghem é que o desejo homossexual (não
necessariamente o desejo do homossexual) poderia desestruturar uma sociedade
falocrata. E esse é um dos motivos da paranoia anti-homossexual, do pânico
anti-homossexual que, muitas vezes, transmuta-se em agressão, em terrorismo
machista — a atmosfera sombria do medo — e, de forma mais obscena, no
assassinato, na eliminação física do outro. Na obra Pelo cu são apresentados
exemplos dramáticos desse terror anal e os autores colocam o ânus, ademais,
como um dispositivo que decide sobre a humanidade das pessoas.
Para Paul B. Preciado, o dildo, as práticas S/M e a erotização do ânus
são capazes de produzir uma reapropriação de determinadas tecnologias de
repressão que são reelaboradas de uma forma não heteronormativa. Na filosofia
de Preciado, o ânus tem um lugar especial e à maneira militante — e produtora
de utopias — de um manifesto encontramos a seguinte afirmação: “os
trabalhadores do ânus são os novos proletários de uma possível revolução
contrassexual”[6]. Para Preciado, o ânus teria três características que o
empodera contrassexualmente:
Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites
anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros
aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus
é uma zona primordial de passividade, um centro produtor de excitação e de
prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o
ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração
do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à
reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não
podem ser medidos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema
tradicional da representação sexo/gênero vai à merda.[7]
Esses três elementos podem ser questionados e o são por Javier Sáez e
Sejo Carrascosa. No entanto, a potencialidade da analidade foi apontada de
forma incisiva para gerar uma compreensão da necessidade de uma epistemologia
que perpasse a superfície da pele mas, também, por toda as entranhas e que
tenha como mote o final do reto, pois é desse lugar ainda obscuro que surgem as
políticas anais e, para os autores de Pelo cu uma analética.
Uma ética anal ou uma ética da passividade consiste na própria
valorização da posição passiva. E ao lermos Pelo cu sabemos que isso não é
pouco. A temática central do livro de Sáez e Carrascosa parece ser o ânus, mas
talvez seja a passividade e o ânus se configure apenas como uma forma de
passividade, mesmo que ele possa ser, às vezes, muito ativo. Os autores afirmam
que em mais de oito países do mundo o sexo anal pode acarretar a morte e em
mais de oitenta a prisão perpetua. Ou seja, estamos diante de um dispositivo
que decide sobre a vida e a morte das pessoas, diante de um pânico à
passividade e a tudo que ela foi vinculada historicamente. Daí que é necessário
o orgulho passivo de que nos falam Sáez e Carrascosa, essa analética já
apontada por Paco Vidarte em sua Ética bicha, uma ética não mais cerebral
(sabemos as mazelas da razão), mas uma ética anal que vai negar o poder, uma
política do buraco que cansou da troca desigual dos discursos marcados.
Agora trata-se de absorver tudo, apoderar-se de tudo, chupar tudo e não
dar nada em troca. A passividade é acompanhada de uma grande recusa a
determinadas negociações. Daí o giro histórico da analidade passiva para a
analidade ativa e esse, quem sabe, seja o terreno em que se produza uma real
valorização da passividade; um orgulho passivo surgido desse lugar inesperado
que agora está novamente no campo social e político.
*Mestre em
Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Pós-graduado pela
Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Graduado em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). É autor do
livro Temporadas de abandono e Introdução ao O anti-Édipo: capitalismo e
esquizofrenia (no prelo). Contribuiu para a coletânea de textos sobre cinema brasileiro
no livro Directory of World Cinema: Brazil. Correio eletrônico:
ralasfer@gmail.com.
**Doutor em
Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia.
Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC), Milton Santos, e
professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e
Sociedade, ambos da Universidade Federal da Bahia. Criador e coordenador do
grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e um dos criadores e editores da
revista acadêmica Periódicus, primeira e única inteiramente dedicada aos
estudos queer no Brasil. É autor do livro Que os outros sejam o normal: tensões
entre movimento LGBT e ativismo queer e organizador dos livros Stonewall 40 + o
que no Brasil? e Estudos e políticas do CUS, todos publicados pela Editora da
Universidade Federal da Bahia. Correio eletrônico: leandro.colling@gmail.com
NOTAS REFERENCIAIS:
[1] Talvez por isso Deleuze e Guattari, de forma
irônica e contra-intuitiva, escrevem que somente o espírito é capaz de cagar.
Claro que os autores neste momento fazem uma referência a sublimação da
analidade, os prazeres anais deveriam ser sublimados em uma sociedade
heterocentrada e, por isso, o espírito é anal, o espírito é aquele que defeca.
[2] A respeito de grande parte da antropologia
deleuzo-guattariana ver, ademais, LEOPOLDO, Rafael. Deleuze & Guattari:
critica a psicanálise freudiana. Dissertação de Mestrado — Programa de
Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2015.
[3] Claro que Deleuze e Guattari também fazem
alianças com a Antropologia, mas chamam para o seu ambiente teórico o mais
filosófico dos antropólogos: Pierre Clastres.
[4] Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual.
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 136.
[5] Hocquenghem, Guy. El deseo homossexual.
Tradução de Geoffroy Huard de la Marre. Espanha: Melusina, 2000. p. 50
[6] Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual.
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 32.
[7] Idem, ibdem.