Aion contra Cronos: por um tempo intensivo de criação


Aqui estamos nós, agora, preenchendo o presente como esta tela, esta cadeira, este chão. . . Cá estamos, como as moscas, interpostos num arranjo que compõe o todo que nos circunda, que nos mede e limita nossas ações. Mas vejamos, os corpos não se misturam com perfeição ou sequer harmonia - estamos lançados no ineditismo dos encontros -, fissuras não cessam de se abrir por entre o todo. É que apaixonados que somos, atravessados que fomos pelo que foi, ávidos que somos pelo que virá, não nos cabemos assim por muito tempo em medidas. Demasiados que somos, escapamos, e escapando, num instante, trazemos conosco a ferida que nos impele a atuar contra as coisas tal como elas estão. Assim, pois, de um lado Deus, o todo, a soma dos corpos no presente, e do outro o Ator, um corpo, um presente relativo que muda de natureza quando em disputa com o todo. Eis, numa palavra, a noção estoica de Aion contra Cronos, qual Deleuze remonta - no vigésimo terceiro paradoxo da Lógica do Sentido  -para pensar o acontecimento em sua temporalidade paradoxal.

Atemo-nos um pouco mais nesta distinção para entendermos a cisão. Deus (Cronos) vive como presente o que é passado e futuro, como um presente corporal que é o tempo das misturas. O Ator (Aion), contrariamente, vive como instante que divide o presente ao infinito em passado e futuro, esticando sobre ele uma linha que separa as coisas das proposições. Mais precisamente, Cronos é a efetuação física dos corpos, enquanto Aion é um acontecimento puro, impessoal e pré-individual, qual espera a criação da linguagem semiótica. O Aion libera o conteúdo corporal do presente, fazendo-o emergir num tempo de criação, como singularidades que são um plano de forças virtuais que se atualizam. Aion é o tempo da imprevisibilidade que cria o acontecimento.

O presente se contrai em profundidade para absorver os presentes relativos. Mas no interior da profundidade há um devir-louco que se furta ao presente e ameaça de dentro a ordem dos corpos. Com o Aion, o devir-louco da profundidade sobe a superfície num movimento em que o corte profundo aparece como fenda na superfície. Trata-se de uma espécie de mistura venenosa que subverte Deus, que o confunde e altera. A saúde deve ser buscada na outra direção, na de Aion contra Cronos. É preciso sermos abundantes de vida, termos a grande saúde que Nietzsche fala, para assim conseguirmos empunhar o machado contra as coisas com valores arraigados. Pois, também em Canguilhem, a saúde diz respeito a criação, porque o doente não o é por falta de norma, mas antes por incapacidade de ser normativo.


Arte de Alexandra Levasseur



Aion, enquanto atua contra o estado de coisas, pode correr infinitamente para o futuro ou passado, mas somente enquanto dura o instante. Disso se segue que a questão é: Como suscitar instantes imensos? Há quem faça “formulas éticas” a partir da moral estóica e da tragédia grega de modo geral. Seneca diz:  Um dia como uma vida! A manhã como representação da nossa infância e adolescência, a tarde como o período da maturidade à velhice, e a noite, final do dia, como o momento em que se olha para trás e com alegria se entrega ao sono (morte) pelo dia bem vivido. Já Nietzsche, por sua vez, diz: Eterno retorno e Amor-fati! Para que a questão em tudo e em cada coisa: “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pese sobre nossos atos como o maior dos pesos.

Como diz Zaratustra quando em convalescência pós transvaloração: “A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado”. Não há criação sem sofrimento. Precisamos nos destruir, alegrarmos com isso que força a afirmação de outros valores. A fissura na superfície do acontecimento, quando incorporada, racha a forma do Eu. Todavia, há aí o perigo da loucura, mas por isso temos a arte, para podermos nos rachar sem medo. Deleuze não cansou de dizer que a arte é o que resiste ao presente porque serve de alimento a sujeitos larvares que virão a ser o povo que falta. Há movimentos que só sujeitos embrionários conseguem suportar. É o sentido que faz existir o que exprime. Pois nos inventemos, ainda que para depois, como o poeta pantaneiro, confessar: “Noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira”.

O que estamos esperando? Matemos Deus e tomemos o seu lugar, pelo menos enquanto durar o instante da criação. . . 

Uma vida por vir: para além das grades do juízo


"Oh, senhor cidadão, eu quero saber, eu quero saber com quantos quilos de medo, com quantos quilos de medo se faz uma tradição?" (Senhor Cidadão, Tom Zé)
A cada vez que circulo pela cidade e me esbarro com um estudante de Direito, vejo que a espessura de seus livros cresceu duas vezes mais. Com dó de seus braços estirados aos limites, os quais revelam o cansaço da tarefa de carregar os avolumados blocos de papel, reparo que o aumento do número de páginas me expõe, em sua mais nítida e assustadora concretude, aos investimentos na direção de judicializar a vida. Eu desejo chamar a atenção, a sua, minha, a de qualquer um, para o fato de que uma vida extrapola as palavras, os papéis, os juízos, os juízes – e, acredite  a nós mesmos.

Aqueles que apreendem a tentativa de regulamentar uma vida jamais conseguirão esgotá-la de seus impreteríveis escapes. O escape é por natureza aquilo que é impossível de se conter. Quem viu algo escapar, só pôde o ver já escapando, em ato. Como num flagrante. Ou então, retrospectivamente. Não pôde prevê-lo, nem contê-lo, pois ele só ganha existência escapulindo. Uma vida, como um plano de pura imanência, para além do bem e do mal, em seus escapes inantecipáveis.

Ao circular pela cidade, em contato com a vida pública em sua plena operação, na dependência do contato com pessoas que não escolhemos, estamos lançados aos imprevistos. Na rua, pode ser que tropecemos, que esbarremos, que sejamos interpelados por alguém. Contudo, o que nos acontece? Como nos sentimos ao exercer a vida pública?

As palavras deste texto berçam na aventura que é morar na cidade do Rio de Janeiro. E nascem, precisamente, daquilo que pude sentir ao viver na “Guanabara”. O medo é certamente um dos sentimentos que experimentei como transeunte, e como acanhado frequentador dos espaços cariocas. Suponho que você também já pôde sentir o sabor desse "medo urbano", que já provou de seu gosto amargo. Talvez seja justamente aí, na malha fina do paladar, do sentir, que encontramos um território significativo a ser explorado. Sentir e pôr em questão o sabor, indagar-se sobre os procedimentos e mecanismos de produção afetiva, pôr em cheque a dimensão de "pré-coisa" da coisa. Equivocar o sentido acostumado do sentimento ao ponto de mergulhar os pés no Rio para sair desse ciclo vicioso. Ao ponto de sentir alguma coisa doce lhe penetrar, e pôr-se sensível às intensidades que cruzam para além e aquém do amargor do medo.


Arte de Aaron Siskind

Tal incorporação do plano intensivo de forças na cartografia da subjetividade desafia-nos a entrever, como que por uma vertigem visionária, o compromisso ético-estético-político com a vida.  Precisamos lutar por microfissuras e pela criação de espaços abertos às singularidades. Lutar com intuito de dar a vida uma bossa nova: para além do pau, da pedra e do que parece ser o fim do caminho.

Fantasia em Spinoza


A palavra fantasia não aparece de modo direto no vocabulário empregado por Spinoza, todavia, compreende-se possível a relação dessa temática, que acompanha a filosofia desde a sua formulação feita por Platão, pelo que o autor entende por afecção e ideia de afecção ou imaginação; feito que nos permite, ao mesmo tempo, uma correlação com sua prática epistémica. É importante destacar a temática da relação, do encontro ou mistura de corpos na Ética, pois, deve-se levar em consideração que Spinoza era um fisicalista, ou seja, dos que insiste sobre a matéria do ser, e formula seu problema em relação à capacidade de abstração humana rejeitando qualquer modelo de explicação de ordem transcendente. “Todo o caminho da Ética se faz na imanência” [1], de onde o pensador lança uma nova perspectiva sobre a decorrência da imagem do pensamento e determina o movimento da filosofia na direção de uma ciência dos “efeitos”. Em síntese, Spinoza dirigirá suas investidas teóricas às causas geradoras que se encontram no processo, na origem das imagens mentais que compõem o ato humano de fantasiar.

De acordo com Spinoza, “as ideias que temos dos corpos exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos exteriores” [2]. Em outras palavras, quando um corpo X encontra-se com um corpo Y, e por este é afetado, as imagens ou afecções resultantes do encontro no corpo X indicará muito mais a natureza de seu corpo, sobre o qual houve a ação, do que propriamente a natureza do corpo de Y. Vejamos um dos exemplos apresentados por Spinoza, no livro II da Ética o pensador explica que:

Compreendemos claramente qual é a diferença entre, por exemplo, a ideia de Pedro, que constitui a essência de Pedro, e a ideia desse mesmo Pedro que existe em outro homem, digamos, Paulo. A primeira, com efeito, explica diretamente a essência de do corpo de Pedro, e não envolve a existência senão enquanto Pedro existe; a segunda, entretanto, indica mais o estado do corpo de Paulo do que a natureza de Pedro. (Spinoza, 2016, p. 109).

Spinoza, antes mesmo de Nietzsche, revela-nos o “coliseu” dos afetos por trás do aparente véu da consciência, limita a colaboração da razão discriminadora, faz dela uma ferramenta para o corpo. Segue-se disso que as imagens mentais, decorrentes das afecções de um corpo, não chegam nunca à compreensão e a causa de alguma coisa, pois ela é meramente um efeito, um resultado dos encontros. Para melhor compreensão do problema, vejamos outro celebre exemplo proposto por Spinoza:

Assim, quando olhamos o sol, imaginamos que ele está a uma distância aproximada de duzentos pés, erro que não consiste nessa imaginação enquanto tal, mas em que, ao imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa imaginação enquanto tal, mas em que, ao imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa imaginação. (...) a afecção de nosso corpo envolve a essência do sol, enquanto o próprio corpo por ele é afetado. (Spinoza, 2016, p. 127).

Isso significa que a percepção do sol como estando próximo indica muito mais o modo como meu corpo é constituído, por tanto afetado e determinado pelo sol, do que propriamente o modo como o sol é constituído. Spinoza dirá que, “quando a mente humana considera os corpos exteriores por meio das ideias de afecção de seu próprio corpo, dizemos que ela imagina. (...) Portanto, à medida que imagina os corpos exteriores, a mente não tem deles um conhecimento adequado” [3].

Dado que o homem acredita conhecer fazendo uma imagem de si, uma imagem do mundo e uma imagem do outro, tais teses implicam numa dupla acusação: da “consciência” e do “conhecimento” (... da subjetividade e da objetividade) [4]. E isso porque a consciência, para Spinoza, é naturalmente a casa de uma ilusão. A sua natureza é tal que ela compreende apenas os efeitos, mas ignora as causas. Segundo Spinoza, “é daí que nasce a maioria das controvérsias, mais especificamente, ou porque os homens não explicam corretamente sua mente ou porque interpretam mal a mente alheia” [5]. Neste sentido, partindo das afecções de um corpo, formas, rostos, figuras, fantasias são vistas como um efeito do nosso estado de impotência para compreender a natureza dos afetos. Isso explica com precisão de que modo os encadeamentos naturais são necessariamente apreendidas como “signos” por aqueles que têm um conhecimento inadequado e uma imaginação fértil.

Spinoza apresenta três formas de conhecimento possíveis ao homem, em seus termos, três gêneros de conhecimento. Em versão supersônica, o primeiro e mais rudimentar, seria o gênero da experiência vaga, da ideia inadequada, o qual é um efeito dos encontros entre corpos; como dito anteriormente, quando um corpo exterior afeta o corpo humano, a mente forma sobre aquele, ideias confusas, mutiladas, porque a mente não conhece o corpo exterior em si, mas apenas as marcas/afecções deixadas por este e as traduz em signos, imagens, superstições, opiniões, fantasmas. O segundo gênero de conhecimento é o da razão ou noção comum, neste estágio o homem passa a relacionar suas afecções com a de outros corpos e a organizá-las, neste estágio adquire o conhecimento das causas dos efeitos dos encontros; é a ciência aplicada às experiências, não cria, mas já não é somente um dado. No terceiro gênero de conhecimento, liberdade e pensamento se associam para Spinoza, é o gênero da ciência intuitiva, aqui o homem deixa de ser efeito e passa a agir, se torna causa adequada, há poder de invenção e criação, produz o novo com rigor, ultrapassa o existente, passa a compreender a dinâmica dos afetos e trabalha com ela.

Observa-se que a fantasia é correspondente ao primeiro gênero de conhecimento, no qual o corpo se encontra em seu estado mais passivo, apaixonado. Quando se fantasia não se é causa adequada da ação, pois tal ação também envolve a natureza de um corpo externo do qual não se tem a ideia adequada. O gênero da experiência vaga nos fornece ideias inadequadas sobre os corpos exteriores e por isso é a única fonte de falsidade. A mente, nesse estado, estaria fadada a padecer, uma vez que, para Spinoza, “padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que somos causa senão parcial” [6].


Arte de Christine Wu

O grande problema decorrente do exposto, ou seja, da mente estar presa ao primeiro gênero de conhecimento, é que ela não tem gerencia sobre os afetos no corpo; Spinoza entende afeto como sendo “as afeções do corpo, pelos quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” [7]. E por estar vulnerável a todos esses altos e baixos afetivos decorrentes da ação alheia, o corpo vive neste estado à servidão da paixão, a ser escravo dos próprios sentimentos.

A liberdade só é conquistada ao se alcançar o terceiro gênero de conhecimento, no qual a essência dos corpos é conhecida e a potência de criação é ativada. Porém, passar pelas noções comuns da razão é uma condição para se avançar para a etapa da ciência intuitiva, porque a essência só pode ser conhecida através das relações dos corpos, de modo que, seguindo essa mesma linha de raciocínio, não há como deixar de experienciar o primeiro gênero, pois, “as noções comuns encontram na imaginação as próprias condições de sua formação” [8], estas só podem ser formadas a partir de uma imagem. Assim não há erro nas imagens formadas pela mente, o erro não está na fantasia em si, mas sim na privação da ideia que aponta aquela imagem como sendo inexistente. [9] De modo que, para Spinoza, se a fantasia é a primeira forma de conhecimento do sujeito humano, então ela corresponderia ao primeiro degrau na busca pela liberdade, à qual ninguém poderia furtar-se.






[1] DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 35.
[2] SPINOZA, Benedictus de. Ética.  Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 107.
[3] Ibid., p. 119.
[4] DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática.  São Paulo: Escuta, 2002, p. 19.
[5] SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 145.
[6] Ibid,. 163.
[7] Id.
[8] DELEUZE, Gilles. Espinoza e o problema da expressão, p. 205.
[9] Ibid,. 137.

“Pelo cu: políticas anais” - Por uma ética da passividade

Por Rafael Leopoldo* e Leandro Colling**


A tradução e publicação do livro Pelo cu: políticas anais no Brasil é, antes de mais nada, uma ação política. Em primeiro lugar, coloca-se à disposição um livro vinculado ao que hoje se acostumou denominar de estudos ou Teoria Queer, cujas obras principais ainda carecem de traduções para a língua portuguesa. Apesar disso, a produção brasileira de livros e artigos nos estudos queer é significativa e em franca ascensão. Em segundo lugar, este livro faz uma crítica feroz — profunda e sem perder o humor — a um sistema heterocentrado levando em conta a questão da passividade. O terceiro aspecto consiste no momento desta tradução e publicação. O Brasil é o país latino-americano que mais assassina pessoas LGBT, em especial travestis. Além disso e também por isso, a política brasileira parece, a cada momento, se esquecer das potencialidades de Junho de 2013 e se apresenta com o pior da direita, desde a pompa de uns pondés, aos ruídos de reinaldos azevedos, a política do ódio dos bolsonaros, até as imposturas dos olavos de carvalho.

Mas a escrita e tradução deste livro, que começa com um insulto, o famoso “vai tomar no cu”, além de política, colabora com uma significativa produção de conhecimento que impacta e enfrenta determinados saberes e se filia a outros. Por exemplo: o que esse insulto significa para quem tem o ânus como um órgão sexual? Quem tem o poder de determinar quais partes de nossos corpos devem ser considerados como órgãos sexuais? O que pode sair de um cu além de excrementos? Como é possível pensar a partir do cu ou pelo cu? Perguntas como essas perpassam a leitura do livro e nos levam para produção de uma ética da passividade. Para fazer isso, o livro retira a analidade do campo privado e a coloca no campo social e político e assim gera não somente uma analética, mas toda uma gama de possíveis políticas anais que são extremamente necessárias. Se há tanto preconceito, se há um dispositivo que decide sobre a vida e a morte de determinadas pessoas, se há tanto pânico em relação a qualquer possibilidade existencial que fuja do ideal estanque de uma feminilidade e de uma masculinidade de mármore, são necessárias políticas anais que possam esquizofrenizar o que alguns têm o orgulho de chamar de identidade. Esfarelar essa identidade, seja apontando-a como sem nenhum fundamento biológico, ou ainda, mostrando-a como uma ficção social, poderia nos tornar menos segregativos, menos fincados a uma ilusão de um essencialismo heterocentrado e suas identidades molares.

Pelo cu: políticas anais é o livro mais recente de Javier Sáez com coautoria de Sejo Carrascosa. Sáez é tradutor de diversos livros, autor de Teoria queer e psicanálise e um dos organizadores de Teoria queer: políticas lesbianas, bichas, trans, mestiças. Já Carrascosa se identifica como um autodidata. Em comum, ambos possuem uma longa amizade e trajetória do ativismo queer espanhol. É no trânsito dos saberes da Sociologia, da Filosofia, da Teoria Queer e da Psicanálise que surgem algumas indagações de uma ética da passividade, ou ainda, como preferem os autores, uma analética.

Na busca de uma origem a respeito da temática da analidade é sempre possível tentar buscar um ponto primário mais distante. No nosso caso, talvez fosse possível encontrá-lo na poesia, no romance, na pintura, de forma mais contemporânea na fotografia ou ainda no cinema. Todavia, já nas primeiras páginas de Pelo cu localizamos uma aliança teórica vital, já que o livro é dedicado a Paco Vidarte, autor da obra Ética bicha, um belo e radical livro de filosofia e a grande influência dos autores. Encontramo-nos, então, essencialmente, diante de uma abordagem filosófica da analidade e se expormos algumas referências anteriores a obra de Sáez e Carrascosa não nos espantaremos com a valorização do ânus como objeto teórico e/ou político. Iremos citar aqui apenas três dessas referências: a obra de Deleuze-Guattari, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado.

A princípio o tema do cu pode parecer esdrúxulo e espantoso, pois poderíamos vê-lo sem nenhuma dignidade filosófica, já que se costuma ponderar filosoficamente de forma mais contundente sobre a alma, sobre o etéreo, sobre o espírito[1] etc., e deixa-se de lado toda a complexidade da corporeidade e seus elementos, do prazer com o corpo até a estranheza e desconforto com ele. Além disso, em regra, quando pensamos o corpo damos privilégio epistemológico para algumas partes e não para outras, sempre um maior valor para a cabeça e uma desvalorização do baixo-ventre. Dessa forma, compreendemos que há toda uma arquitetura política do corpo, as partes dignas e as partes indignas, as partes desejáveis e as indesejáveis. O que há de novo na obra de Javier Sáez e Sejo Carrascosa é, exatamente, uma densa e importante produção teórica tendo como temática exclusiva o ânus. Daí podemos apontar a primeira referência filosófica, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, principalmente o primeiro tomo da sua obra O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.

No livro O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, há um comentário que gera ecos importantes no tema da analidade e que vai afetar uma gama de autores como, por exemplo, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado. Trata-se aqui de afirmar que o primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social, foi o ânus. Essa afirmação aparece no terceiro capítulo d’O anti-Édipo, intitulado “Selvagens, bárbaros, civilizados”[2], parte da obra deleuzo-guattariana que faz uma conexão com o saber antropológico e, também, produz uma crítica à Antropologia. O contexto da citação é a argumentação de que o problema do socius não é a troca — como proposto pela antropologia de Marcel Mauss -, mas marcar os corpos, codificar os fluxos — como proposto pela filosofia de Friedrich Nietzsche. Deleuze e Guattari trocam Mauss por Nietzsche, a Antropologia pela Filosofia[3] para afirmar que a máquina territorial primitiva funciona por meio de codificação de fluxos que investe nos órgãos e na marcação dos corpos.

Para Deleuze e Guattari, o ânus serve como modelo para a privatização. Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a ser colocado fora do campo social e, assim, tem-se um desinvestimento do órgão e há a constituição de pessoas privadas, centros individuais, ou seja, pessoas globais, eus específicos e discerníveis. O ânus já não é mais investido coletivamente, mas desinvestido e privado. Muda-se do intensivo com seus objetos parciais para o extensivo com a formação de um eu. Sobre essa criação político-arquitetônica do corpo podemos citar um agudo comentário de Paul B. Preciado: “foi necessário fechar o ânus para sublimar o desejo pansexual transformando-o em vínculo social, como foi necessário fechar as terras comuns para assinalar a propriedade privada”[4]. Hocquenghem, de outra forma, diz que ao descobrir o trabalho como fundamento de valor, a economia política burguesa o fecha imediatamente na forma de propriedade privada dos meios de produção. Freud descobre a libido como fundamento da vida efetiva, e o fecha imediatamente na forma de privatização edipiana familiar[5].

Guy Hocquenghem lê O anti-Édipo e, por meio dessa leitura, produz a sua obra O desejo homossexual, escrito nos anos 70 e no seio da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR), um espaço que se distanciava do discurso ameno dos gays de uma classe média branca e das feministas liberais. Juntamente com o FHAR estão as bichas, as travestis e uma gama de outros que não se identificavam com o bom feminismo da época. É necessário lembrar que essas fissuras nos movimentos é que vai gerar, nos anos 80/90, a Teoria queer.

Hocquenghem, n’O desejo homossexual, está em diálogo com a efervescência política da época, com a psicanálise freudiana e lacaniana, mas, também, como já salientado, recebe uma forte influência deleuzo-guattariana. Hocquenghem faz uma análise acurada da homossexualidade e de como ela foi relacionada a categorias religiosas — crime contra natura -, categorias jurídicas — relação da criminalidade e da homossexualidade -, categorias médicas — a homossexualidade como enfermidade, perversão etc. Mas, além disso, como ela está conexa com o capitalismo e o surgimento da família burguesa. N’O anti-Édipo já havia toda uma crítica ao familismo. Não obstante, o que nos parece interessante em Hocquenghem é que o desejo homossexual (não necessariamente o desejo do homossexual) poderia desestruturar uma sociedade falocrata. E esse é um dos motivos da paranoia anti-homossexual, do pânico anti-homossexual que, muitas vezes, transmuta-se em agressão, em terrorismo machista — a atmosfera sombria do medo — e, de forma mais obscena, no assassinato, na eliminação física do outro. Na obra Pelo cu são apresentados exemplos dramáticos desse terror anal e os autores colocam o ânus, ademais, como um dispositivo que decide sobre a humanidade das pessoas.

Para Paul B. Preciado, o dildo, as práticas S/M e a erotização do ânus são capazes de produzir uma reapropriação de determinadas tecnologias de repressão que são reelaboradas de uma forma não heteronormativa. Na filosofia de Preciado, o ânus tem um lugar especial e à maneira militante — e produtora de utopias — de um manifesto encontramos a seguinte afirmação: “os trabalhadores do ânus são os novos proletários de uma possível revolução contrassexual”[6]. Para Preciado, o ânus teria três características que o empodera contrassexualmente:

Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial de passividade, um centro produtor de excitação e de prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser medidos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda.[7]

Esses três elementos podem ser questionados e o são por Javier Sáez e Sejo Carrascosa. No entanto, a potencialidade da analidade foi apontada de forma incisiva para gerar uma compreensão da necessidade de uma epistemologia que perpasse a superfície da pele mas, também, por toda as entranhas e que tenha como mote o final do reto, pois é desse lugar ainda obscuro que surgem as políticas anais e, para os autores de Pelo cu uma analética.


Uma ética anal ou uma ética da passividade consiste na própria valorização da posição passiva. E ao lermos Pelo cu sabemos que isso não é pouco. A temática central do livro de Sáez e Carrascosa parece ser o ânus, mas talvez seja a passividade e o ânus se configure apenas como uma forma de passividade, mesmo que ele possa ser, às vezes, muito ativo. Os autores afirmam que em mais de oito países do mundo o sexo anal pode acarretar a morte e em mais de oitenta a prisão perpetua. Ou seja, estamos diante de um dispositivo que decide sobre a vida e a morte das pessoas, diante de um pânico à passividade e a tudo que ela foi vinculada historicamente. Daí que é necessário o orgulho passivo de que nos falam Sáez e Carrascosa, essa analética já apontada por Paco Vidarte em sua Ética bicha, uma ética não mais cerebral (sabemos as mazelas da razão), mas uma ética anal que vai negar o poder, uma política do buraco que cansou da troca desigual dos discursos marcados.

Agora trata-se de absorver tudo, apoderar-se de tudo, chupar tudo e não dar nada em troca. A passividade é acompanhada de uma grande recusa a determinadas negociações. Daí o giro histórico da analidade passiva para a analidade ativa e esse, quem sabe, seja o terreno em que se produza uma real valorização da passividade; um orgulho passivo surgido desse lugar inesperado que agora está novamente no campo social e político.


*Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Pós-graduado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). É autor do livro Temporadas de abandono e Introdução ao O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (no prelo). Contribuiu para a coletânea de textos sobre cinema brasileiro no livro Directory of World Cinema: Brazil. Correio eletrônico: ralasfer@gmail.com.

**Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC), Milton Santos, e professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, ambos da Universidade Federal da Bahia. Criador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e um dos criadores e editores da revista acadêmica Periódicus, primeira e única inteiramente dedicada aos estudos queer no Brasil. É autor do livro Que os outros sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer e organizador dos livros Stonewall 40 + o que no Brasil? e Estudos e políticas do CUS, todos publicados pela Editora da Universidade Federal da Bahia. Correio eletrônico: leandro.colling@gmail.com


NOTAS REFERENCIAIS:


[1] Talvez por isso Deleuze e Guattari, de forma irônica e contra-intuitiva, escrevem que somente o espírito é capaz de cagar. Claro que os autores neste momento fazem uma referência a sublimação da analidade, os prazeres anais deveriam ser sublimados em uma sociedade heterocentrada e, por isso, o espírito é anal, o espírito é aquele que defeca.
[2] A respeito de grande parte da antropologia deleuzo-guattariana ver, ademais, LEOPOLDO, Rafael. Deleuze & Guattari: critica a psicanálise freudiana. Dissertação de Mestrado — Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2015.
[3] Claro que Deleuze e Guattari também fazem alianças com a Antropologia, mas chamam para o seu ambiente teórico o mais filosófico dos antropólogos: Pierre Clastres.
[4] Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 136.
[5] Hocquenghem, Guy. El deseo homossexual. Tradução de Geoffroy Huard de la Marre. Espanha: Melusina, 2000. p. 50
[6] Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 32.
[7] Idem, ibdem.

A infância não tem cura


       Quando chega a notícia de que uma criança está sendo gerada, apressa-se, atropela-se e logo se pergunta com tom de limitação: “é menino ou menina?”, “rosa ou azul?”, “Maria ou João?”... A resposta para perguntas como estas deveria ser tão somente: “é gente!”. Porque “gente” oferece tantas possibilidades, que nem mesmo se eu tivesse dez línguas em dez bocas conseguiria dizê-las.

A criança nasce. As mãos do médico fazem morrer o silêncio e nascer o berro. Aos poucos, em harmonia com a natureza, as crianças engatinham e ganham os passos. As palavras, no entanto, preexistem à elas, e, por isto, operam no inverso: não são os corpos que ganham as palavras, são as palavras que circunscrevem os corpos, em processos de subjetivação.

       Os ouvidos atentos da criança recebem os mandamentos da professora de português, que “ensigna”, “dá ordens, comanda” (1). Os mandamentos daquele que os dá, independente da posição que este ocupa, “não são exteriores e nem se acrescentam” (2) às informações de um enunciado. Pelo contrário, são intrínsecos a este. Ou seja, não há comunicação sem a transmissão de palavras de ordem. Há, no entanto, a imposição de coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática, como o masculino e o feminino, o singular e o plural. É quando dizer é fazer um fazer, quando ordena um fazer. Esta operatória da linguagem transpassa os corpos e, por vezes, ditam modos mortiços de ser e estar no mundo.


Por Abdela Igmirien


         A linguagem não é um sistema fechado e invariante, “definido por termos e relações constantes” (3), mas antes trata-se de um “sistema em desequilíbrio perpétuo, em bifurcação” (4), o que abre a porta para a criação e extensão de seus limites. É quando inventar a língua é inventar a vida. Inventar palavras que dão lugar a existência é apostar que a infância não tem cura - não tem quem cure. É aproximar-se, aproximar ser, de um devir-criança, onde pode-se encontrar condições para tensionar a língua até o ponto de fazê-la balbuciar e guagejar. Mastigar as palavras. Dividi-las até que virem outras.

         É preciso provocar o reencontro com o nosso próprio e primeiro silêncio, e criarmos ouvidos oceânicos – onde tudo cabe – para que possamos acolher, antes de tudo, todo tipo de existência e a diversidade dos desejos do humano. E depois berrar por aterros e desterros, por abalos em levadas suaves, que desterritorializem e territorializem o campo da linguagem o quanto preciso for.


Notas referenciais:

(1) DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs. vol. 2, pág 12.
(2) DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs . vol. 2, pág 12.
(3) DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica, pág 123.
(4) DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica, pág 123.