por Amanda S.Dutra e Higor Gusmão
A palavra
fantasia não aparece de modo direto no vocabulário empregado por Spinoza, todavia, compreende-se possível a
relação dessa temática, que acompanha a filosofia desde a sua formulação feita
por Platão, pelo que o autor entende por afecção e ideia de afecção ou
imaginação; feito que nos permite, ao mesmo tempo, uma correlação com sua
prática epistémica. É importante destacar a temática da relação, do encontro ou
mistura de corpos na Ética, pois,
deve-se levar em consideração que Spinoza era um fisicalista, ou seja, dos que insiste sobre a matéria do ser, e
formula seu problema em relação à capacidade de abstração humana rejeitando
qualquer modelo de explicação de ordem transcendente. “Todo o caminho da
Ética se faz na imanência” [1], de onde o pensador lança uma nova perspectiva
sobre a decorrência da imagem do pensamento e determina o movimento da
filosofia na direção de uma ciência dos “efeitos”. Em síntese, Spinoza dirigirá suas investidas
teóricas às causas geradoras que
se encontram no processo, na origem das imagens mentais que compõem o ato
humano de fantasiar.
De acordo com Spinoza, “as ideias que
temos dos corpos exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do que a natureza
dos corpos exteriores” [2]. Em outras palavras,
quando um corpo X encontra-se com um corpo Y, e por este é afetado, as imagens
ou afecções resultantes do encontro no corpo X indicará muito mais a natureza
de seu corpo, sobre o qual houve a ação, do que propriamente a natureza do
corpo de Y. Vejamos um dos exemplos apresentados por Spinoza, no livro II da Ética o pensador explica que:
Compreendemos
claramente qual é a diferença entre, por exemplo, a ideia de Pedro, que
constitui a essência de Pedro, e a ideia desse mesmo Pedro que existe em outro
homem, digamos, Paulo. A primeira, com efeito, explica diretamente a essência
de do corpo de Pedro, e não envolve a existência senão enquanto Pedro existe; a
segunda, entretanto, indica mais o estado do corpo de Paulo do que a natureza
de Pedro. (Spinoza, 2016, p. 109).
Spinoza,
antes mesmo de Nietzsche, revela-nos o “coliseu” dos afetos por trás do
aparente véu da consciência, limita a colaboração da razão discriminadora, faz
dela uma ferramenta para o corpo. Segue-se disso que
as imagens mentais, decorrentes das afecções de um corpo, não chegam nunca à
compreensão e a causa de alguma coisa, pois ela é meramente um efeito, um
resultado dos encontros. Para melhor compreensão do problema, vejamos outro
celebre exemplo proposto por Spinoza:
Assim, quando
olhamos o sol, imaginamos que ele está a uma distância aproximada de duzentos
pés, erro que não consiste nessa imaginação enquanto tal, mas em que, ao
imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa imaginação
enquanto tal, mas em que, ao imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a
causa dessa imaginação. (...) a afecção de nosso corpo envolve a essência do
sol, enquanto o próprio corpo por ele é afetado. (Spinoza, 2016, p. 127).
Isso significa que a percepção do sol como
estando próximo indica muito mais o modo como meu corpo é constituído, por
tanto afetado e determinado pelo sol, do que propriamente o modo como o sol é
constituído. Spinoza dirá que, “quando a mente humana considera os corpos
exteriores por meio das ideias de afecção de seu próprio corpo, dizemos que ela
imagina. (...) Portanto, à medida que imagina os corpos exteriores, a mente não
tem deles um conhecimento adequado” [3].
Dado que o homem acredita conhecer fazendo
uma imagem de si, uma imagem do mundo e uma imagem do outro, tais teses implicam
numa dupla acusação: da “consciência” e do “conhecimento” (... da subjetividade
e da objetividade) [4].
E isso porque a consciência, para Spinoza, é naturalmente a casa de uma ilusão.
A sua natureza é tal que ela compreende apenas os efeitos, mas ignora as
causas. Segundo Spinoza, “é daí que nasce a maioria das controvérsias, mais
especificamente, ou porque os homens não explicam corretamente sua mente ou
porque interpretam mal a mente alheia” [5]. Neste sentido, partindo
das afecções de um corpo, formas, rostos, figuras, fantasias são vistas como um
efeito do nosso estado de impotência para compreender a natureza dos afetos.
Isso explica com precisão de que modo os encadeamentos naturais são
necessariamente apreendidas como “signos” por aqueles que têm um conhecimento
inadequado e uma imaginação fértil.
Spinoza
apresenta três formas de conhecimento possíveis ao homem, em seus termos, três
gêneros de conhecimento. Em versão supersônica, o primeiro e mais rudimentar,
seria o gênero da experiência vaga, da ideia inadequada, o qual é um efeito dos
encontros entre corpos; como dito anteriormente, quando um corpo exterior afeta
o corpo humano, a mente forma sobre aquele, ideias confusas, mutiladas, porque
a mente não conhece o corpo exterior em si, mas apenas as marcas/afecções
deixadas por este e as traduz em signos, imagens, superstições, opiniões,
fantasmas. O segundo gênero de conhecimento é o da razão ou noção comum, neste
estágio o homem passa a relacionar suas afecções com a de outros corpos e a
organizá-las, neste estágio adquire o conhecimento das causas dos efeitos dos
encontros; é a ciência aplicada às experiências, não cria, mas já não é somente
um dado. No terceiro gênero de conhecimento, liberdade e pensamento se associam
para Spinoza, é o gênero da ciência intuitiva, aqui o homem deixa de ser efeito
e passa a agir, se torna causa adequada, há poder de invenção e criação, produz
o novo com rigor, ultrapassa o existente, passa a compreender a dinâmica dos
afetos e trabalha com ela.
Observa-se que a fantasia é correspondente
ao primeiro gênero de conhecimento, no qual o corpo se encontra em seu estado
mais passivo, apaixonado. Quando se fantasia não se é causa adequada da ação,
pois tal ação também envolve a natureza de um corpo externo do qual não se tem
a ideia adequada. O gênero da experiência vaga nos fornece ideias inadequadas
sobre os corpos exteriores e por isso é a única fonte de falsidade. A mente,
nesse estado, estaria fadada a padecer, uma vez que, para Spinoza, “padecemos
quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que
somos causa senão parcial” [6].
Arte de Christine Wu
O grande problema decorrente do exposto,
ou seja, da mente estar presa ao primeiro gênero de conhecimento, é que ela não
tem gerencia sobre os afetos no corpo; Spinoza entende afeto como sendo “as
afeções do corpo, pelos quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
estimulada ou refreada, e ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” [7]. E por estar vulnerável a
todos esses altos e baixos afetivos decorrentes da ação alheia, o corpo vive
neste estado à servidão da paixão, a ser escravo dos próprios sentimentos.
A liberdade só é conquistada ao se
alcançar o terceiro gênero de conhecimento, no qual a essência dos corpos é
conhecida e a potência de criação é ativada. Porém, passar pelas noções comuns
da razão é uma condição para se avançar para a etapa da ciência intuitiva,
porque a essência só pode ser conhecida através das relações dos corpos, de
modo que, seguindo essa mesma linha de raciocínio, não há como deixar de
experienciar o primeiro gênero, pois, “as noções comuns encontram na imaginação
as próprias condições de sua formação” [8], estas só podem ser
formadas a partir de uma imagem. Assim não há erro nas imagens formadas pela
mente, o erro não está na fantasia em si, mas sim na privação da ideia que
aponta aquela imagem como sendo inexistente. [9] De modo que, para Spinoza,
se a fantasia é a primeira forma de conhecimento do sujeito humano, então ela
corresponderia ao primeiro degrau na busca pela liberdade, à qual ninguém
poderia furtar-se.
[1] DELEUZE,
Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 35.
[2] SPINOZA, Benedictus
de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2016, p. 107.
[3]
Ibid., p. 119.
[4] DELEUZE,
Gilles. Espinosa: filosofia prática. São
Paulo: Escuta, 2002, p. 19.
[5]
SPINOZA,
Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 145.
[6]
Ibid,. 163.
[7]
Id.
[8]
DELEUZE, Gilles. Espinoza e o problema da expressão, p. 205.
[9] Ibid,. 137.