Fantasia em Spinoza


A palavra fantasia não aparece de modo direto no vocabulário empregado por Spinoza, todavia, compreende-se possível a relação dessa temática, que acompanha a filosofia desde a sua formulação feita por Platão, pelo que o autor entende por afecção e ideia de afecção ou imaginação; feito que nos permite, ao mesmo tempo, uma correlação com sua prática epistémica. É importante destacar a temática da relação, do encontro ou mistura de corpos na Ética, pois, deve-se levar em consideração que Spinoza era um fisicalista, ou seja, dos que insiste sobre a matéria do ser, e formula seu problema em relação à capacidade de abstração humana rejeitando qualquer modelo de explicação de ordem transcendente. “Todo o caminho da Ética se faz na imanência” [1], de onde o pensador lança uma nova perspectiva sobre a decorrência da imagem do pensamento e determina o movimento da filosofia na direção de uma ciência dos “efeitos”. Em síntese, Spinoza dirigirá suas investidas teóricas às causas geradoras que se encontram no processo, na origem das imagens mentais que compõem o ato humano de fantasiar.

De acordo com Spinoza, “as ideias que temos dos corpos exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos exteriores” [2]. Em outras palavras, quando um corpo X encontra-se com um corpo Y, e por este é afetado, as imagens ou afecções resultantes do encontro no corpo X indicará muito mais a natureza de seu corpo, sobre o qual houve a ação, do que propriamente a natureza do corpo de Y. Vejamos um dos exemplos apresentados por Spinoza, no livro II da Ética o pensador explica que:

Compreendemos claramente qual é a diferença entre, por exemplo, a ideia de Pedro, que constitui a essência de Pedro, e a ideia desse mesmo Pedro que existe em outro homem, digamos, Paulo. A primeira, com efeito, explica diretamente a essência de do corpo de Pedro, e não envolve a existência senão enquanto Pedro existe; a segunda, entretanto, indica mais o estado do corpo de Paulo do que a natureza de Pedro. (Spinoza, 2016, p. 109).

Spinoza, antes mesmo de Nietzsche, revela-nos o “coliseu” dos afetos por trás do aparente véu da consciência, limita a colaboração da razão discriminadora, faz dela uma ferramenta para o corpo. Segue-se disso que as imagens mentais, decorrentes das afecções de um corpo, não chegam nunca à compreensão e a causa de alguma coisa, pois ela é meramente um efeito, um resultado dos encontros. Para melhor compreensão do problema, vejamos outro celebre exemplo proposto por Spinoza:

Assim, quando olhamos o sol, imaginamos que ele está a uma distância aproximada de duzentos pés, erro que não consiste nessa imaginação enquanto tal, mas em que, ao imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa imaginação enquanto tal, mas em que, ao imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa imaginação. (...) a afecção de nosso corpo envolve a essência do sol, enquanto o próprio corpo por ele é afetado. (Spinoza, 2016, p. 127).

Isso significa que a percepção do sol como estando próximo indica muito mais o modo como meu corpo é constituído, por tanto afetado e determinado pelo sol, do que propriamente o modo como o sol é constituído. Spinoza dirá que, “quando a mente humana considera os corpos exteriores por meio das ideias de afecção de seu próprio corpo, dizemos que ela imagina. (...) Portanto, à medida que imagina os corpos exteriores, a mente não tem deles um conhecimento adequado” [3].

Dado que o homem acredita conhecer fazendo uma imagem de si, uma imagem do mundo e uma imagem do outro, tais teses implicam numa dupla acusação: da “consciência” e do “conhecimento” (... da subjetividade e da objetividade) [4]. E isso porque a consciência, para Spinoza, é naturalmente a casa de uma ilusão. A sua natureza é tal que ela compreende apenas os efeitos, mas ignora as causas. Segundo Spinoza, “é daí que nasce a maioria das controvérsias, mais especificamente, ou porque os homens não explicam corretamente sua mente ou porque interpretam mal a mente alheia” [5]. Neste sentido, partindo das afecções de um corpo, formas, rostos, figuras, fantasias são vistas como um efeito do nosso estado de impotência para compreender a natureza dos afetos. Isso explica com precisão de que modo os encadeamentos naturais são necessariamente apreendidas como “signos” por aqueles que têm um conhecimento inadequado e uma imaginação fértil.

Spinoza apresenta três formas de conhecimento possíveis ao homem, em seus termos, três gêneros de conhecimento. Em versão supersônica, o primeiro e mais rudimentar, seria o gênero da experiência vaga, da ideia inadequada, o qual é um efeito dos encontros entre corpos; como dito anteriormente, quando um corpo exterior afeta o corpo humano, a mente forma sobre aquele, ideias confusas, mutiladas, porque a mente não conhece o corpo exterior em si, mas apenas as marcas/afecções deixadas por este e as traduz em signos, imagens, superstições, opiniões, fantasmas. O segundo gênero de conhecimento é o da razão ou noção comum, neste estágio o homem passa a relacionar suas afecções com a de outros corpos e a organizá-las, neste estágio adquire o conhecimento das causas dos efeitos dos encontros; é a ciência aplicada às experiências, não cria, mas já não é somente um dado. No terceiro gênero de conhecimento, liberdade e pensamento se associam para Spinoza, é o gênero da ciência intuitiva, aqui o homem deixa de ser efeito e passa a agir, se torna causa adequada, há poder de invenção e criação, produz o novo com rigor, ultrapassa o existente, passa a compreender a dinâmica dos afetos e trabalha com ela.

Observa-se que a fantasia é correspondente ao primeiro gênero de conhecimento, no qual o corpo se encontra em seu estado mais passivo, apaixonado. Quando se fantasia não se é causa adequada da ação, pois tal ação também envolve a natureza de um corpo externo do qual não se tem a ideia adequada. O gênero da experiência vaga nos fornece ideias inadequadas sobre os corpos exteriores e por isso é a única fonte de falsidade. A mente, nesse estado, estaria fadada a padecer, uma vez que, para Spinoza, “padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que somos causa senão parcial” [6].


Arte de Christine Wu

O grande problema decorrente do exposto, ou seja, da mente estar presa ao primeiro gênero de conhecimento, é que ela não tem gerencia sobre os afetos no corpo; Spinoza entende afeto como sendo “as afeções do corpo, pelos quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” [7]. E por estar vulnerável a todos esses altos e baixos afetivos decorrentes da ação alheia, o corpo vive neste estado à servidão da paixão, a ser escravo dos próprios sentimentos.

A liberdade só é conquistada ao se alcançar o terceiro gênero de conhecimento, no qual a essência dos corpos é conhecida e a potência de criação é ativada. Porém, passar pelas noções comuns da razão é uma condição para se avançar para a etapa da ciência intuitiva, porque a essência só pode ser conhecida através das relações dos corpos, de modo que, seguindo essa mesma linha de raciocínio, não há como deixar de experienciar o primeiro gênero, pois, “as noções comuns encontram na imaginação as próprias condições de sua formação” [8], estas só podem ser formadas a partir de uma imagem. Assim não há erro nas imagens formadas pela mente, o erro não está na fantasia em si, mas sim na privação da ideia que aponta aquela imagem como sendo inexistente. [9] De modo que, para Spinoza, se a fantasia é a primeira forma de conhecimento do sujeito humano, então ela corresponderia ao primeiro degrau na busca pela liberdade, à qual ninguém poderia furtar-se.






[1] DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 35.
[2] SPINOZA, Benedictus de. Ética.  Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 107.
[3] Ibid., p. 119.
[4] DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática.  São Paulo: Escuta, 2002, p. 19.
[5] SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 145.
[6] Ibid,. 163.
[7] Id.
[8] DELEUZE, Gilles. Espinoza e o problema da expressão, p. 205.
[9] Ibid,. 137.